quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Irão a caminho da Guerra" por Joschka Fischer


Na sequência dos recentes acontecimentos no Irão, deixo um artigo de opinião de Joschka Fischer, (ministro dos negócios estrangeiros da Alemanha e vice-chanceler entre 1998 a 2005, foi líder do Partido Verde alemão durante quase 20 anos), publicado no Público, esta semana.

"Irão a caminho da Guerra"

«Enquanto a Europa continua preocupada com a sua própria crise em câmara lenta, e outras potências mundiais continuam a ser hipnotizadas pelo espectáculo bizarro dos inúmeros esforços das instituições europeias em salvarem o euro (e dessa forma o sistema financeiro global), nuvens de guerra concentram-se em massa sobre o Irão, uma vez mais.

Ao longo de vários anos, o Irão tem promovido tanto um programa nuclear, como também o desenvolvimento de mísseis de longo alcance, o que aponta somente para uma conclusão: os líderes do país estão empenhados em fabricar armas nucleares, ou pelo menos em alcançar a tecnologia até ao limiar, onde somente uma única decisão política é necessária para atingir esse fim.

A última linha de acção iria, sem dúvida, manter o Irão no âmbito do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de que é signatário. Mas não pode existir nenhuma dúvida razoável sobre as intenções das autoridades iranianas. De outra forma, os programas nucleares e mísseis seriam um desperdício de dinheiro. Afinal de contas, o Irão não precisa de tecnologia de enriquecimento de urânio. O país só tem um reactor nuclear civil, com barras de combustível fornecidas pela Rússia, e a tecnologia iraniana que está actualmente a ser desenvolvida não pode ser utilizada nisso.
Mas o enriquecimento de urânio faz muito sentido para quem quer uma arma nuclear; na verdade, para esse propósito, o enriquecimento é indispensável. Além do mais, o Irão está a construir um reactor a água pesada, supostamente para fins de investigação, mas cuja existência também é necessária para fabricar uma bomba de plutónio.

O Irão, em violação do TNP, escondeu partes substanciais deste programa. O país também gastou milhões de dólares em compras ilegais, de tecnologias de enriquecimento e programas de armas nucleares, aos cientistas nucleares paquistaneses e ao negociante do mercado negro A.Q. Khan, o “pai da bomba paquistanesa”. O Irão tentou ocultar estas transacções durante anos, até que a sua máscara foi descoberta quando a Líbia começou a cooperar com o Ocidente e expôs a rede de Khan.

Um Irão munido com armas nucleares (ou uma decisão política para as possuir) alteraria, drasticamente, o equilíbrio estratégico do Médio Oriente. Na melhor das hipóteses, uma corrida ao armamento nuclear ameaçaria consumir esta região, já instável, o que colocaria em risco o TNP, com extensas consequências globais.

Na pior das hipóteses, as armas nucleares serviriam a política externa “revolucionária” do Irão na região, que tem sido aplicada pelos líderes do país desde o nascimento da República Islâmica em 1979. A combinação de uma política externa anti-status quo com armas nucleares e mísseis é um pesadelo não só para Israel, que pelo menos tem capacidade de segunda ofensiva, mas também para os vizinhos árabes não-nucleares do Irão e para a Turquia.

De facto, os países do Golfo, incluindo a Arábia Saudita, sentem-se existencialmente mais ameaçados pelo Irão do que Israel. O perfil de segurança da Europa mudaria, também drasticamente, caso o Irão possuísse ogivas nucleares e mísseis de longo alcance.

Todas as tentativas de negociação não levaram a lugar nenhum, com o Irão a continuar a enriquecer urânio e a melhorar a sua tecnologia nuclear. As sanções, apesar de úteis, só funcionam a muito longo prazo e uma mudança no equilíbrio de poderes dentro do país não se prevê a curto prazo. Sendo assim, trata-se só de uma questão de tempo – e não muito tempo – até que as nações vizinhas do Irão, e a comunidade internacional, se confrontarão com uma fatídica escolha: ou aceitam o Irão como uma potência nuclear, ou decidem que a mera perspectiva, à medida que se torna mais realista, está a conduzir à guerra.

O presidente Barack Obama já deixou claro que os Estados Unidos não aceitarão o Irão como uma potência nuclear, em nenhuma circunstância. O mesmo também se aplica para Israel e para os vizinhos árabes do Irão no Golfo.

O próximo ano promete ser crítico. O governo israelita sugeriu, recentemente, que o Irão atingiria o limiar nuclear num prazo de nove meses e que poderia tornar-se numa grande questão, na longa corrida eleitoral à presidência norte-americana, em Novembro de 2012. E é difícil de imaginar que o actual governo de Israel ficará impassível enquanto o Irão se torna numa potência nuclear (ou numa quase-potência nuclear). Por outro lado, falar de intervenção militar – a qual, dadas as circunstâncias, resumir-se-á largamente aos ataques aéreos – é barato. Há sérias dúvidas sobre a possibilidade do programa nuclear iraniano ser eliminado por meio aéreo. Na verdade, com a probabilidade de grande parte do mundo condenar qualquer ataque, a intervenção militar poderia esclarecer o caminho diplomático para uma bomba iraniana.

É melhor não pensar no que o Médio Oriente poderia parecer, após este tipo de confronto. As forças da oposição iranianas seriam, provavelmente, as primeiras vítimas da acção militar ocidental e, noutros locais da região, a Primavera Árabe submergiria, provavelmente, sob uma massiva onda de solidariedade anti-Ocidente com o Irão. A região seria novamente empurrada para a violência e para o terror, ao invés de continuar a sua transformação de baixo para cima. Os efeitos na economia mundial não serão menos significativos, sem falar das consequências humanitárias.

Uma última tentativa numa solução diplomática afigura-se improvável, dado que a questão nuclear desempenha um papel decisivo na luta de facções do regime iraniano, no qual aquele que se compromete a favorecer pode ser considerado o perdedor. Além do mais, os líderes iranianos parecem assumir que o país é grande demais e poderoso demais para ser controlado por sanções ou ataques aéreos.

Historicamente, a estrada para o desastre tem sido geralmente feita de boas intenções e de erros graves de julgamento. Isso poderia acontecer novamente em 2012, quando os erros de cálculo em todas as partes poderiam limpar o caminho para a guerra ou para um Irão como potência nuclear – ou, em termos bastantes realistas, para ambas. Uma nova escalada no Médio Oriente culminará nestas deploráveis alternativas, mais cedo do que o previsto, a menos que seja encontrada uma solução diplomática (ou a menos que a diplomacia possa pelo menos ganhar tempo).

Infelizmente, esse cenário é pouco provável no próximo ano. Na ausência de qualquer caminho viável para um compromisso diplomático norte-americano, com o Irão, o fardo de organizar, convocar e conduzir tais negociações altamente sensíveis, cairá sobre a Europa. E os líderes europeus, como o Irão sabe muito bem, têm outras coisas nas suas mentes».

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O Comercio marítimo no Sudeste Asiático

A região Ásia-Pacífico pode ser identificada como um centro gravitacional de comércio, demonstrado pela dimensão das frotas regionais, pelos grandes portos (8 dos 10 maiores portos do mundo encontram-se na região e de salientar que 6 são na Republica Popular da China) e pelo número de navios que navegam na região, no entanto várias rotas marítimas, com maior densidade de tráfego, atravessam uma região com algumas disputas territoriais entre vários Estados, pelo que a consequente instabilidade tem prevalecido (Geise, T., p6, 2011).
Este estatuto como centro gravitacional segue o crescimento de toda a região. A RPC é, sem dúvida, o driver mais relevante nessa matriz, não podendo descurar, no entanto, as economias do Japão, Coreia do Sul, Taiwan, bem como toda a sub-região do Sudeste Asiático com a sua elevada dependência do comércio marítimo. Este crescimento regional tem provocado uma crescente
demanda por contentores e navios para transportá-los, fazendo aumentar o volume de negócios dos portos regionais e do tráfego marítimo regional, estimulado por uma contínua intensificação das trocas comerciais inter e intra-regional. Este crescimento regional, além disso, desencadeou demandas crescentes de energia, necessária para sustentar esse crescimento, dependências que variam entre os 60% e 90% para os Estados do Nordeste Asiático, o que explica porque o aumento do tráfego de contentores é acompanhado por um aumento no tráfego de petroleiros (Geise, T.,p6, 2011).
Cerca de 80% da região do Sudeste Asiático é constituída por mar, as ilhas e penínsulas da região estão situadas entre os oceanos Pacífico e Índico, sendo como uma fronteira para principais artérias de comunicação e comércio mundial. De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o crescimento económico e o comércio de mercadorias por via marítima estão intimamente relacionados. Nos últimos anos, a quota da Ásia no total de mercadorias transportadas por mar a bordo dos navios aumentou para 41 por cento, seguido, por ordem decrescente, pelas Américas, Europa, África e Oceânia.
O sector de transporte marítimo que mais tem crescido é o de contentores, o qual a Ásia
detém cerca de 60% do global, segundo o “Relatório do transporte marítimo de 2010”, tendo sido a sua quota, em 1995, de 50%. Este é o tipo de transporte, dos principais tipos de carga (granel, petróleo e contentores) que mais tem crescido nos últimos anos. Outro factor importante, que demonstra a importância que a região Ásia-Pacífico tem no comércio marítimo mundial é o facto de 8 dos 10 portos mais movimentados no mundo estarem localizados na Ásia oriental, tal
como referido anteriormente e como demonstrado na tabela abaixo.

Hoje em dia a população do Sudeste Asiático reside ou depende economicamente do mar que é contudo, ao mesmo tempo, a fonte de uma multiplicidade de ameaças e factores de instabilidade que colocam em perigo não só a prosperidade das populações locais como também ameaçam directamente a segurança dos Estados (Bradford, J. F., p1, 2005).
Cerca de 2/3 do abastecimento de recursos energéticos pela Coreia do Sul e mais de 60% por parte do Japão e de Taiwan transitam anualmente pela região do Sudeste Asiático. Por outro lado, pensa-se que o Mar do Sul da China poderá conter uma larga variedade de recursos energéticos (incluindo petróleo e gás natural) e minerais, mas a sua exploração tem sido comprometida pelo conflito existente entre diversos países em torno de reivindicações de soberania.
Dependência de Petróleo Importado na Ásia, 1971 - 2030.

Acerca do Egipto e da revolução



Aos interessados deixo duas sugestões de leitura sobre os recentes acontecimentos no Egipto.

1º - “Tahrir os Dias da Revolução” de Alexandra Lucas Coelho, relata a sua experiência no Cairo durante o mês de Fevereiro, já nos finais do governo de Mubarak. O olhar de um estrangeiro sob uma sociedade em revolta que desejava por mudanças. «”Tahrir - Os Dias da Revolução” não é uma reportagem, é o relato inédito dessa experiência».

Autora de “Caderno Afegão: Um Diário de Viagem” (2009) e “Viva México” (2010), Alexandra Lucas Coelho, nasceu em 1967 em Lisboa. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, estreia-se na rádio na década de 80. Entre 1991 e 1998 foi jornalista da RDP. Desde 1998 trabalha no jornal Público. Em 2005 – 2006 esteve em Jerusalém como correspondente e desde final de 2010 vive no Rio de Janeiro como correspondente do Público.

«Nos próximos dias será assim. Tahrir vai oscilar entre o trânsito e o pós-revolução, incerto e tantas vezes desapontador, como tudo o que se segue aos momentos extraordinários» - in "Tahrir os Dias da Revolução" pág. 97

2º - “O Estado do Egito” de Alaa Al Aswany, relata a situação da sociedade egípcia aos olhos de um dos romancistas mais aclamados, considerado dos maiores escritores do Médio Oriente e um dos 500 muçulmanos mais influentes do mundo.

Alaa Al Aswany analisa os principais problemas do seu país, como ainda levanta uma série de questões inquietantes sobre o futuro do Estado Egípcio. «Quem será o novo presidente e como será eleito num país em que até agora só simplórios, oportunistas e comediantes é que estavam envolvidos em eleições? Qual será o papel a desempenhar pela Irmandade Muçulmana? Como poderão ser implementadas reformas democráticas num país habituado a contradições, tais como a de a autoridade religiosa que recorre ao método da tortura?»

«Enquanto a arrastava pelo chão, dando-lhe pontapés com as botas, ela não implorou, não pediu ajuda, nem apelou ao brutamontes. Entoava: "Liberdade, liberdade, viva o Egito, viva o Egito." E nesse momento o general teve uma estranha sensação. Apercebeu-se de que podia matar aquela rapariga, despedaçá-la, se quisesse, mas não conseguia derrotá-la, humilhá-la ou quebrar a sua vontade. Sentiu que apesar de todo o seu poder saía derrotado e que era aquela pobre rapariga brutalizada e violentada que iria triunfar» - in "O Estado do Egito"

domingo, 27 de novembro de 2011

Irão: Parte I

Aqui ficam uma série de reflexões sobre o Irão

Irão: Actor global

Antes de mais, importa mencionar que o Irão, enquanto regime teocrático, centra muitos poderes no líder religioso, Ali Khamenei, nomeadamente aqueles que por norma são destinados ao presidente da República, supervisando e delineando o rumo político do país. Para além disto, “O Supremo Líder do Irão” nomeia os titulares dos principais cargos e órgãos. O presidente, cargo actualmente ocupado por Mahmoud Ahmadinejad, é a segunda figura do país e é eleito por sufrágio universal. Ainda assim os candidatos passam pela ratificação do Conselho de Guardiões, para garantir a defesa do ideal da revolução islâmica por parte de quem quer chegar à presidência.
Apesar da constante instabilidade da região, o Irão, graças ao seu posicionamento e vasto conhecimento da multiplicidade de línguas e cultura, tem se mantido como um “mestre” do “soft power”, mantendo a sua influência activa na zona. Se é certo que se verifica um recrudescimento das suas posições externas, temos sempre que levar em conta as necessidades internas do próprio Irão, principalmente ao nível da segurança. Observa bem os “reports” da Chatham House sobre o Médio Oriente, que o Irão, estando rodeado por países com forças americanas no terreno, quer nas crises no Iraque e Afeganistão, quer na Turquia, com as bases. No noroeste está o Cáucaso, também sempre em conflito. Ou seja, um Irão fraco e sem voz activa poderia significar o fim da tal independência advogada pela Revolução Islâmica. Assim, torna-se fácil a percepção das duras posições do regime presidido por Ahmadinejad. Aliás, a eleição do sucessor do moderado Khatami representou em si uma viragem no país, uma vez que entrou em conflito também com a elite política e abastada do Irão, graças ao conservadorismo das suas convicções. O tom vincadamente inflamatório da sua retórica tem abanado a estruturas privadas, pouco dadas a conservadorismo no consumo. Até que ponto isto pode prejudicar a economia? Ainda se está para saber, agora é certo que estas elites não estão com a vida facilitada.
No plano externo, ao contrário dos antecessores, Mahmoud Ahmadinejad tem optado por uma via de confrontação com o Ocidente. E tem astutamente escolhido alguns parceiros, sempre por oposição aos EUA. Dentro deste âmbito, basta lembrarmos as provocações ao Estado de Israel, referindo que este deveria desaparecer, aproximando-se consequentemente a “organizações de libertação” como o Hamas e o Hezbollah. A somar a isto, oficialmente o governo de Ahmadinejad nega a existência do Holocausto, mais uma vez em provocação frontal aos EUA e Israel. Apesar de administração Obama optar por via mais pacífica, Ahmadinejad tem insistido nestas e noutras provocações, como a ingerência Xiita nos quadros governamentais iraquianos e amizade com a Síria. Mas citando Pio Penna Filho “o que não podemos e nem devemos fazer é concordar com o isolamento completo do Irã, ainda mais quando sabemos que vivemos num mundo repleto de contradições e de muita hipocrisia, afinal de contas não presenciamos recentemente uma política externa absolutamente agressiva (e que se utilizou inclusive da tortura) por parte de uma das mais importantes democracias do Ocidente?”[1] A verdade é que o Irão tem-se mantido activo em várias frentes. Tem sempre algo a dizer, mais do que não seja pelo silêncio. Tem sido também uma sombra nas relações EUA/Rússia. Nem a própria ONU escapa às “recomendações” iranianas.


[1] FILHO, Pio Pena, O Irã e sua Inserção Internacional, disponível em www.mundorama.net, consultado em 12 de Dezembro de 2010.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Conceito de Segurança Humana

"Mais do que nunca vivemos num mundo interligado. As crises actuais ameaçam as vidas de milhões de homens, mulheres e crianças. Aumentam a insegurança humana e comprometem os avanços rumo à realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio” (Ban Ki-moon, Conferência sobre Segurança Humana, Tóquio, 2010).

De facto, o conceito de segurança humana patente nas declarações do Secretário-Geral da ONU surge nos anos de 1990 e alargou a noção tradicional de segurança, centrada na segurança dos Estados.

Com o fim do confronto bipolar consolida-se uma nova agenda internacional em que emergem novos temas, novas ameaças e novos actores que desafiam as perspectivas do realismo clássico e que, ao mesmo tempo, questionam o estatuto de reivindicação moral em que o Estado soberano se assume como guardião exclusivo da segurança dos indivíduos.

Neste contexto, a segurança passa a ser entendida como uma condição que os cidadãos têm direito de usufruir como membros da sociedade onde se inserem e, em última instância, como membros da própria Humanidade (Valquez Apud Xavier, 2010: 96). A defesa da pessoa humana deixa de ser encarada como uma prerrogativa natural do Estado-nação soberano para se assumir potencialmente como uma responsabilidade da comunidade internacional.

Por outro lado, devemos ter em consideração, quando se fala de segurança humana das debilidades que o conceito suporta, nomeadamente da sua instrumentalização por parte de interesses políticos e estratégicos.

Segundo muitos académicos, isso tem sido bastante visível após os atentados de 11 de Setembro de 2001. Com base na “segurança humana” e à luz da tese da “responsabilidade de proteger” há o risco de “intervenções humanitárias” de países do centro do sistema internacional em países periféricos em conflito ou em crise. Este tipo de intervenções serve-se de razões humanitárias para justificar uma intervenção militar com objectivos políticos bem delineados.

Em 2003 no Iraque a abordagem de segurança humana fundamentou de certa forma a acção militar, uma vez, que o governo de Saddan Hussein violava a segurança humana dos iraquianos.

Assim, a segurança humana fez emergir o consenso na comunidade internacional de que um Estado não pode desrespeitar os direitos dos seus cidadãos sem uma reprovação internacional e até mesmo de uma intervenção. Contudo, a queda de Saddam Hussein não resolveu o problema da insegurança do povo iraquiano, que se encontra numa situação mais vulnerável e sob maior risco que antes da intervenção externa (Oliveira, 2009: 8-12).

Em suma, o conceito de segurança humana traz potencialidades e debilidades, mas, por ser um conceito novo há ainda muito que fazer de modo a ampliar as suas potencialidades e minimizar as suas deficiências. Problemas que vão desde a fome, pobreza, aos conflitos armados, degradação ambiental e ao terrorismo internacional constituem uma ameaça à segurança humana e mostram que é necessário conceber soluções integradas e, simultaneamente, centradas nas pessoas.

Referências

Webgrafia

OLIVEIRA, Adriana Bazzano (2009), “O fim da Guerra Fria e os estudos sobre segurança internacional” in http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Aurora/OLIVEIRA.pdf

XAVIER, Ana Isabel Marques (2010), “A União Europeia e a Segurança Humana: um actor de gestão de crises em busca de uma cultura estratégica? Análise e considerações prospectivas” in https://estudogeral.sib.uc.pt/.../A%20União%20Europeia%20e%20a%20Segurança%20Humana.pdf

Sites

http://www.segurancahumana.eu/
http://www.unric.org/pt/
http://www.undp.org/

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

E da “primavera árabe” passamos a um “outono árabe”? - O caso do Egipto


Passados nove meses após a queda de Hosni Mubarak e a uma semana das eleições legislativas, Tahrir assistiu a novas revoltas. A emblemática praça que derrubou um líder é de novo palco principal para novos acontecimentos.

A 18 de Novembro cerca de 50 mil egípcios saíam à rua exigindo a demissão do Conselho Militar. Saliento que o mesmo, Conselho Supremo das Forças Armadas, dirige o país desde a queda de Mubarak em Fevereiro, sendo presidido pelo marechal Hussein Tantaoui (ex-ministro da Defesa do regime de Mubarak).

Se Tahrir foi palco da luta de um povo contra um regime repressivo, esse mesmo povo vê a permanência dos militares no poder como a continuação desse passado. «“Os militares no poder fazem parte do antigo regime e é com ele que se preocupam, não com o povo. Por isso, pedimos que se demitam o quanto antes”». Quando grande parte dos egípcios pretendiam uma ruptura e o início de uma nova era pós Mubarak, assistem ao oposto.

No passado fim-de-semana, os confrontos intensificaram-se, chegando as forças de segurança a dispararem gás lacrimogéneo e balas de borracha contra os revoltosos que exigiam o fim da junta militar e a transposição do poder para civis. Agravando ainda a situação, apesar das eleições previstas para o próximo dia 28 deste mês, as primeiras desde o afastamento do antigo líder, o Conselho Supremo das Forças Armadas permanecerá no poder, sendo acusados de estarem a preparar o domínio ao próximo governo.

Dada a violência usada nos confrontos, já constam cerca de 40 vítimas mortais e ainda os milhares de feridos, mas tal não desmotiva os revoltosos a continuar a lutar. Como menciona o Washington Post, «“egyptian blood is being spilled. It’s still the January revolution. We’re going to turn it into Libya,” one man chanted, as the crowd clapped along. “Oh martyr, whose soul is resting, your right will be returned. Kill. Kill. Kill. Every bullet makes us stronger”».

Mahamed Elbaradei, Nobel da Paz referia «queremos ver o poder do conselho militar totalmente nas mãos de um governo de unidade nacional composto por civis. A função do conselho militar deve ser apenas a defesa das fronteiras».

Na passada segunda-feira (21/11), o governo interino demitiu-se, mas os protestos não cessaram. Hussein Tantawi, líder do Conselho Superior das Forças Armadas confirmou a realização das eleições parlamentares já na próxima semana, e de presidenciais até Julho de 2012. Ainda propôs a realização de um referendo sobre a permanência do regime militar no poder.

Apesar das declarações de Tantawi, a violência persiste em Tahrir. Contrariamente às posições dos revoltosos na primeira revolução, a unidade não é notória. A Irmandade Muçulmana não está a participar nos protestos, e anseiam pela realização das eleições parlamentares, contrapondo aos revoltosos que primeiro querem a queda do governo militar.


O cenário está totalmente em aberto quanto ao futuro do Egipto. Várias questões surgem perante os recentes acontecimentos.

Os militares continuarão no poder? A Irmandade Muçulmana acederá ao poder? Caminhará a sociedade egípcia para a democracia, ou seguirá o exemplo da Líbia aplicando a Sharia no país? Os Estados Unidos da América terão capacidade de agir no Egipto, caso os confrontos agravem? Estará Israel preparado para o surgimento de um Estado defensor da causa palestiniana?

Com o surgimento de novas notícias sobre os eventos em Tahrir, outras interrogações ocorrem. Neste momento como referi e pouco provável conseguirmos acertar no rumo que o Egipto tomará. Se após Mubarak muitos perspectivaram que a abertura à democracia estaria consolidada, meses depois deparam-se com um cenário totalmente caótico que contrapõem tudo aquilo que detinham como certo.

Importa reter que o Egipto não é um mero “peão” no xadrez político, e muito mais que isso. A sua posição é elevada, dada a importância que detém na região, como garante de estabilidade. É ainda mais importante dado o papel que deteve como mediador entre Israel e a Palestina. E certamente tudo aquilo que está a decorrer no país, e o rumo que tomar influenciará todo o Médio Oriente.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Paulo Yokota: “EUA e UE continuam com políticas económicas erradas”

Paulo Yokota, economista brasileiro (dupla nacionalidade japonesa), ex-director do Banco Central do Brasil, ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e antigo professor da Universidade de São Paulo. Tem marcado a sua carreira entre dois lados do Pacífico, Brasil e Japão, contando com várias publicações sobre o intercâmbio entre estes dois países, mas também já trabalhou pela Europa e Estados Unidos. É ainda o responsável pelo site Ásia Comentada, com o qual o Ocidente Subjectivo tem uma parceria de troca de divulgação de artigos. Em entrevista feita por email, o economista alertou que Estados Unidos e União Europeia têm seguido o caminho errado, continuando reféns do sistema financeiro, e mostrou-se muito crítico do FMI. Disse ainda que a introdução do euro foi “forçada”, identificou muita inércia entre os funcionários de instituições internacionais e avisou que o Brasil terá dificuldades em obter um lugar permanente no Conselho de Segurança.

Ocidente Subjectivo (OS): O euro conseguiu superar a primazia histórica do dólar mas a crise das dívidas soberanas em vários países da Zona Euro tem posto a nu várias fragilidades. Entende que o fim da moeda única europeia ou o convivência com o regresso de algumas moedas locais (como acontece em algumas localidades brasileiras com vista a estimular o comércio da região) poderia ser uma saída para a crise na Europa?

Paulo Yokota: Tenho a impressão que, apesar dos cuidados tomados antes da formação da Comunidade Europeia, a Europa não é uma região ideal para tais iniciativas, pois as diferenças entre os diversos países membros são acentuadas. Uma política fiscal uniforme em países de nível de desenvolvimento económico diferentes é sempre difícil. Os mais desenvolvidos ajudaram, em parte, no preparo de uma infra-estrutura compatível, mas, na minha modesta opinião, a introdução da moeda única foi forçada. Mesmo nos Estados Unidos, o sistema FED [Reserva Federal norte-americana] procura respeitar estas diferenças, com unidades regionais, com suas limitações e diferenças. Há necessidade, a meu ver, de uma política monetária diferenciada pelos diversos países membros, pois as evoluções das economias locais se realizam em compassos diversos.
Como resolver agora com a actual situação existente? Parece uma tarefa hercúlea que vai exigir muito pragmatismo. As realidades económicas, mesmo com as ajudas possíveis, continuarão diferenciadas não se conseguindo fortes impulsos regionais, acima da média da Comunidade, como estão a ocorrer no Brasil, dadas as deseconomias de escala e aglomeração existentes nos centros mais avançados, com ganhos de produtividade rural e de mineração nas regiões que antes eram menos privilegiadas.
O turismo pode ajudar em algo, bem como actividades que já estão florescendo nas áreas mais periferias, mas tudo vai exigir muito tempo, não havendo segurança de que países como a Alemanha possam sustentar a situação durante este período.
Acho que o novo dirigente eleito em Espanha [Mariano Rajoy] tem razão: não há milagre e será preciso diminuir as diferenças nos preparos dos recursos humanos e o máximo aproveitamento das oportunidades regionais. Acredito que o regresso ao passado será mais complexo. A Europa terá que continuar a fazer o que for possível.

OS: Se fosse presidente do Banco Central Europeu (BCE) optaria pela emissão de mais moeda? Neste sentido, considera que a desvalorização poderá ser um dos caminhos para sair da crise?

Paulo Yokota: O mundo continua utilizando os recursos de que dispõem, com os Estados Unidos a inundarem o mundo com os seus dólares, alegando necessidade de competir com os chineses. Como consequência, o dólar desvalorizou e as moedas dos seus parceiros valorizaram. Acredito que está a haver uma ligeira correcção recente, mas tudo ainda vai depender de como evoluirá a competitividade das diversas regiões no mundo. Como afirmou a Presidente [do Brasil] Dilma Rousseff na ONU, os Estados Unidos e a Europa, do nosso ponto de vista, continuam com as políticas económicas erradas, despendendo recursos para assistir o sistema bancário, quando o problema mundial só pode ser resolvido pelo aumento da demanda e do emprego. As empresas estão com volumes absurdos de recursos financeiros, mas não os investem, pois não existe demanda. No Japão, afectado pelos desastres, a reconstrução está a activar a economia com as demandas que estão a aumentar.

OS:
Barack Obama, que encara com apreensão os efeitos da crise europeia na recuperação nos Estados Unidos, vira-se agora para o Tratado de Livre Comércio Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), que deverá ser a maior área de livre comércio do mundo. Em breves traços, como vislumbra o panorama económico mundial após a consolidação desta zona?

Paulo Yokota: O TPP é um projecto de longo prazo e necessitaria conciliar de forma muito difícil a grande diferença existente entre os países que o estão a discutir, não se constituindo numa alternativa. Se forçarem a sua implantação, os seus participantes colherão problemas semelhantes aos da Comunidade Europeia. Existem muitas condições prévias a serem atendidas. Quer me parecer que a sua discussão é somente uma forma de fugir dos problemas que enfrentam com a desaceleração do crescimento da economia mundial. Os acordos de livre comércio só são sustentáveis quando os parceiros gozam de situações semelhantes.

OS:
Poderemos um dia vir a falar de uma “guerra” económica, com blocos muito fortes e fechados?

Paulo Yokota: Não acredito nesta “guerra”. O que pode acontecer é a tomada de medidas pontuais para resolver os problemas mais graves, com efeitos limitados. No actual mundo globalizado é impossível as economias se manterem fechadas, sob o risco de acabarem isoladas.

OS: Na sequência da questão anterior e tendo em conta o crescimento do Brasil, um país que tem apostado em proteger a sua economia, antevê um mundo cada vez mais proteccionista?

Paulo Yokota: As condições vigentes no Brasil, com uma tributação elevada, juros reais altos, infra-estrutura precária, recursos humanos pouco preparados, pesados encargos previdenciários e uma série de outras distorções, as medidas que estão sendo tomadas destinam-se somente a uma protecção temporária à estrutura industrial já existente. A elevação da produtividade agropecuária e da mineração, bem como das produções adicionais de petróleo e gás, acabam exigindo medidas para o avanço industrial, que não seja prejudicado por um câmbio extremamente valorizado. O Brasil, e não só ele, necessita de medidas multilaterais que controlem os fluxos exagerados dos recursos financeiros internacionais, principalmente os de carácter especulativo, mas o sistema financeiro internacional continua a resistir às diversas proposições neste sentido. O câmbio não é mais determinado pelo comércio e pelos investimentos, mas pelos absurdos fluxos financeiros, que são instáveis.

OS: Tem-se mostrado um optimista, defendendo mesmo que a situação no Japão após o sismo de 11 de Março trouxe algumas oportunidades a nível económico ao país. Em breves linhas, como pensa que poderá acabar a crise no contente africano, que, tal como o Brasil, é muito rico em recursos naturais estratégicos?

Paulo Yokota: África apresenta elevadas potencialidades do ponto de vista dos recursos naturais, mas ainda enfrenta a diferença entre os limites políticos a que foram impostos, quando uma parte substancial do continente ainda vive na realidade tribal. Mas, com a ajuda de países como o Brasil, e não tanto com a China, poderão ir, aos poucos e num prazo mais longo, consolidando uma classe média local, diversificando suas actividades económicas. Necessitarão de muito trabalho e por um prazo mais longo, mas o mundo está a necessitar de produtos que podem ser produzidos naquele continente.

OS: São os mercados que controlam a política ou a política pode controlar os mercados?

Paulo Yokota: Lamentavelmente, o que se chama mercado está distorcido pela forte influência do sector financeiro, que deveria estar ao lado do comércio, um dos braços auxiliares da produção. O bem-estar das diversas populações só melhorará na medida em que mais bens e serviços estejam à disposição delas. As simples transferências e os fluxos financeiros não ajudam muito na criação de bens de todas as naturezas.

OS: Há mais de dez anos, no rescaldo da crise asiática, encarada por muitos como a “crise do FMI”, e após o apoio daquela instituição ao Brasil, disse que o FMI não tem acertado e que é preciso voltar a dar maior atenção ao Banco Mundial. Continua a pensar o mesmo? Porquê?

Paulo Yokota: O FMI sempre teve uma distorção que imaginava resolver os problemas contendo as expansões monetárias e os gastos fiscais. Foram os coreanos que provaram que eles estavam errados e que é o aumento da produção que pode resolver os problemas, com o crescimento do emprego e das assistências aos desempregados. Está a haver uma evolução nos organismos internacionais, mas ainda muitos dos seus tecnocratas só sabem recomendar o que não foram capazes de executar, principalmente nos seus países de origem. Os que sabem, fazem, os que pensam saber, tendem a ensinar, sem nenhuma ofensa aos professores, que também fui um deles.  É muito fácil recomendar a outros que façam o que eles acham correcto, mas eles não estão sujeitos aos constrangimentos de toda a ordem, principalmente políticos.

OS:
A crise no euro já levou algumas pessoas a pôr em causa a actuação da União Europeia. Antevê a perda de poder de instituições internacionais perante a complexidade do mundo?

Paulo Yokota: Lamentavelmente, os organismos internacionais estão inflados com pessoal que apresentam baixa eficiência, pois são difíceis de serem cobrados pelos seus trabalhos. Se muitos são a favor das empresas privadas, onde a cobrança é imediata, criticando os funcionários públicos, imaginem os funcionários de organismos internacionais, cujos “patrões” estão muito distantes de uma efectiva “accountability”.

OS:
Considera que a Ronda de Doha está condenada?

Paulo Yokota: A Ronda de Doha, com um entendimento mundial, é cada vez mais difícil de obter avanços. Muitos países tentam alternativas pelos acordos de livre comércio FTA ou EPA – Economic Partnership Agreement. Acredito que os países necessitam ser pragmáticos, fazendo o que podem e não o que querem.

OS: Entre a dispendiosa luta contra o terrorismo (a guerra longa) e a crise económica, na sua opinião, como é que os Estados Unidos podem manter a sua supremacia na cena internacional?

Paulo Yokota: O mundo comandado por uma potência ou mesmo biporalizado parece coisa do passado. Já estamos num mundo globalizado e múltiplo, com muitos pólos regionais e intermediários. Os Estados Unidos não conseguem nem resolver os seus problemas, ainda que continuem importantes como geradores de algumas novas tecnologias. As suas universidades, que absorveram muitos europeus competentes durante e após a Segunda Guerra Mundial, hoje perdem parte dos seus mais capazes recursos humanos para países como a China. O predomínio da cultura e dos valores do Ocidente não são necessariamente os predominantes no mundo actual. Sempre nos esquecemos dos árabes e dos asiáticos. Até mesmo os andinos estão a ser recuperados, como muito do que os Maias nos deixaram. Estamos a reaprender muito com as civilizações milenares que já tiveram os seus apogeus no passado.

OS:
Entende que o facto de o Brasil assumir posições fortes, como a inclusão da Palestina como membro pleno da ONU ou a crítica à intervenção da NATO na Líbia, pode ajudar ou prejudicar a aspiração do país a membro permanente do Conselho de Segurança?

Paulo Yokota: O Brasil ainda terá dificuldades para obter um lugar permanente no Conselho de Segurança, pois a Alemanha e o Japão devem ter precedências e estão a receber vetos como o da China. O Brasil procura destacar a sua importância, como interlocutor de governos com os quais não concordamos, com o papel internacional que já desempenhamos, com o crescimento de sua economia de forma sustentável, com a substancial melhora de sua distribuição de renda pessoal e regional, com a consolidação de sua política com as substituições dos seus governantes (veja que até no regime militar tivemos sucessões), tradição de resolver as pendências internacionais com a diplomacia, forte miscigenação étnica e cultural, etc. Mas, também temos as nossas limitações e precisamos estar conscientes delas, aprendendo com as soluções que estão a ser obtidas por outros povos.

sábado, 19 de novembro de 2011

UNHATE

Amarelos, brancos, negros, morenos, louros. Diferentes. Distantes. É assim que o mundo (o resto do mundo) é apresentado às crianças que dele não têm mais do que retratos fornecidos por adultos.

Não é possível compreender as Relações Internacionais sem perceber o Homem, com as suas crenças, instintos e com o seu ego, que não raras vezes transbordam para a diplomacia.

A recente campanha da marca têxtil italiana Benetton (que tem apostado no lema “Todos Diferentes, Todo Iguais”) com beijos entre líderes mundiais, como Barack Obama e Hu Jintao ou Bento XVI e o imã sunita egípcio Ahmed el Tayeb, chocou. A Casa Branca fez saber que desaprova o uso comercial da imagem do Presidente norte-americano e o Vaticano foi mais longe, falando numa “grave falta de respeito” para com o Papa e “uma ofensa aos sentimentos dos fiéis”. Entretanto, também a China censurou a imagem.

                                Créditos: www.waleg.com


Sem discorrer sobre a estratégia comercial da Benetton, a empresa tem apostado em contrariar um mundo perfeito vendido na publicidade e aproximando a realidade das pessoas e as pessoas entre si.



                                 Créditos: oladonegrodamoda.blogspot.com


Vale a pena recordar a imagem Anjo e Diabo (numa alusão ao apartheid sul-africano), a fotografia de condenados à pena de morte, a imagem de uma pessoa com a frase “HIV positivo” tatuada e ainda o cemitério “Chemin des Dames”, perto de Paris, onde jazem soldados de todos os países que morreram na I Guerra Mundial.

Algumas destas imagens causaram polémica no seu tempo, mas todas pretenderam confrontar o ser humano com os seus estigmas e com problemas do mundo.

Importa recordar que Luciano Benetton começou a trabalhar muito jovem para sustentar os quatro irmãos logo após a II Guerra Mundial. Cedo se mostrou ousado, apostando nas cores. Quis transpor barreiras e quebrar tabus e conseguiu-o, muito pela ajuda de Oliviero Toscani, que começou a fotografar a realidade nua e crua após ter recebido influências do seu pai, um repórter que acompanhou a guerra.

Luciano e Oliviero são filhos da guerra e fazem questão de não o esquecer. Aliás, usam-no para mostrar que o mundo não é quadrado, mas redondo. E que nele cada um é uma borboleta que ao bater as asas causa um furacão no ponto oposto do globo (Alusão ao "Efeito Borboleta", que diz essencialmente: "uma borboleta bate asas na China  e causa um furacão na América").

                                Créditos: mapadesentido.blogspot.com

Não parece coincidência o facto de a Benetton, que não lançava publicidade polémica desde 2000, vir agora com imagens simbólicas de reconciliação chamar a atenção para assuntos como a proximidade entre os povos e a compreensão mútua.

Esta campanha, a primeira iniciativa da recém-constituída Fundação UNHATE, convida “os cidadãos de todos os países, num momento histórico de grandes turbulências e não menores esperanças, a reflectir sobre como o ódio nasce, sobretudo, do ‘medo do outro’ e do que não se conhece”, disse Alessandro Benetton, vice-presidente executivo do Benetton Group. “O convite a ‘não odiar’, a opor-se contra a ‘cultura do ódio’, representa um objectivo ambicioso, mas realista”, acrescentou.

                                Créditos: whyfashiontoday.blogspot.com

Perante esta mensagem, choca ver Barack Obama, Prémio Nobel da Paz 2009, a distanciar-se da campanha. Mas choca ainda mais que a mesma igreja de João Paulo II, que conseguiu, pela primeira vez, unir líderes de todas as religiões num mesmo encontro em Itália, fale em “ofensa aos sentimentos dos fiéis” perante imagens de tolerância e amor.

Se é perceptível que uma criança que nunca saiu da sua terra encare realidades culturais e locais como naturais, choca que instituições presentes em todo o mundo e assumidamente pacifistas se ofendam com um aproximar das diferenças. Além disso, um pouco de sentido de humor e de tolerância devem marcar a diplomacia, arte na qual o Vaticano está sempre pronto a dar pinceladas. Mas sem pedir tanto, basta ficar enclausurado dentro de uma igreja para recordar as sábias palavras de Jesus Cristo: “Amai o próximo como a si mesmo”.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Irão Nuclear





Nestes últimos dias de forma um tanto discreta, têm surgido notícias sobre uma antiga problemática, o Irão e o armamento nuclear.

Não é difícil compreender o porquê de tanta polémica, sendo o Irão, um dos Estados do “eixo do mal”. A designação surge a 29 de Janeiro de 2002, pelo então presidente dos EUA, George W. Bush, para designar na altura três países (Coreia do Norte, Irão e Iraque), que constituíam uma grave ameaça ao mundo e ainda à segurança do seu país. Mais tarde juntar-se-ia Cuba, Líbia e Síria.

O Irão passava a fazer parte dos “outros”, nas RI. Como refere Adelino Maltez (2002: 78) «grande parte das concepções do mundo e da vida tem-se desenvolvido a partir de um processo de identificação política assente na distinção entre nós e os outros (…)».

Desde o (re) lançamento do programa nuclear do Irão, a tensão tornou-se patente para com grande parte do Ocidente. Importa reter que o programa nuclear iraniano foi lançado na década de 50 do século XX, com auxílio norte-americano. Após a Revolução Islâmica em 1979, o governo abandonaria temporariamente o programa, voltando àquele na década de 90.

Teerão alegaria que o objectivo do programa seria desenvolver centrais nucleares com intuito de gerar 6 mil MW de electricidade, enquanto que os EUA afirmavam que aquele seria uma cobertura para tentar obter armas nucleares. Apesar das acusações o Irão negaria toda e qualquer denúncia insistindo que exerceria o seu direito a tecnologia nuclear para fins totalmente pacíficos. Assistimos a um aumento da tensão entre aquele Estado e o Ocidente, e ao surgimento de sanções, já no primeiro decénio do século XXI, por parte da ONU, EUA e UE.

Em finais de 2009, o Irão pedia assistência à Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), com intuito de conseguir combustível para o reactor de pesquisa destinado a usos médicos. As negociações mediadas pelo Brasil e Turquia, fracassariam, pois a AIEA e o grupo dos 5 + 1, cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Reino Unido, França, Rússia e China) e Alemanha, condicionaram e suspenderam as actividades de enriquecimento de urânio. Apesar de tal, o Irão em Fevereiro de 2010 começaria a produzir urânio enriquecido a 20%. A 11 do mesmo mês, nas comemorações do 31º aniversário da Revolução Islâmica, Mahmoud Ahmadinejad afirmaria que o Irão não só teria capacidade de produzir urânio enriquecido a 20% como a mais de 80%. A 80%, considerado weapons-grade, é possível fabricar armas nucleares.

A 6 de Abril de 2010, o então presidente dos EUA, Barack Obama excluía o Irão e a Coreia do Norte da nova doutrina nuclear norte-americana. Esta pressupõe o compromisso americano de não utilizar armas nucleares contras os países que não possuem este género de armamento e que respeitem as regras do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares. Obviamente Teerão entendeu esta exclusão como uma ameaça.

Mais sanções seriam adoptadas em finais de 2010, atingindo o sector energético (petróleo e gás).

Recentemente a AIEA alertava para progressos do programa nuclear iraniano. «O Irão já terá desenvolvido todas etapas essenciais para construir ogivas nucleares e mísseis, com a ajuda de cientistas estrangeiros». O governo iraniano referia que tudo não passava de “propaganda ocidental” contrapondo às ameaças de ataque militar israelita e ainda do Reino Unido. «(…) Na opinião de uma especialista israelita, “mesmo que o ataque militar tivesse sucesso, o melhor que iria fazer seria adiar a resolução do problema. E as consequências de qualquer intervenção militar seriam bem piores”». Para além do estado israelita, outros têm vindo nas várias declarações demonstrar o descontentamento e preocupação dada a sensível conjuntura. No passado domingo (13/10) Barack Obama referia que «o mundo está unido e o Irão está isolado». Apesar desta simbiose do Ocidente contra o Irão, Rússia e China (Estados que detém poder de veto no Conselho de Segurança da ONU) são totalmente contra novas sanções contra o Estado iraniano ou até mesmo uma acção militar.

Perante o cenário de ameaças contra o Irão, e como forma de retaliação afirmava que caso sofresse alguma acção militar não ficaria impávido e sereno e responderia da mesma forma não apenas no Médio Oriente.

Após o exposto impera várias questões. Não foram os EUA que iniciaram e apoiaram o programa de armamento nuclear no país? Não estará o Ocidente contra o programa nuclear iraniano, pelo simples facto do Irão actualmente estar identificado como um dos Estados do “eixo do mal”? O cenário seria outro caso o Irão estivesse a postura pró-americana que detinha antes da Revolução Islâmica em 1979? Porque não assistimos à mesma postura do Ocidente face à Coreia do Norte, visto que detém armas nucleares, ou então à Síria, que é acusada de possuir programa clandestino?

Estou convicta que se o Irão de hoje fosse o de há 50 anos atrás, o mesmo do tempo do Shah, não assistíamos a esta tensão, porque o governo iraniano estaria do lado dos “amigos”. Seria porventura uma mais valia para o Ocidente deter um aliado naquela zona geográfica, perto de grandes focos de tensão Médio Oriente. Efectivamente a realidade é outra.

Não assistimos às mesmas acções contra a Coreia do Norte (país do “eixo do mal”), provavelmente porque desde 2006 assistimos a testes nucleares condenados pela comunidade internacional, e também porque a sua superioridade nuclear face ao Irão. Relativamente à Síria, apesar da descoberta, pela AIEA, de um possível programa nuclear clandestino, com auxílio norte-coreano, nenhuma sanção foi até agora aplicada, presumivelmente dadas as circunstâncias que o país se encontra no momento.

«Na óptica de Teerão, o Ocidente representa uma ameaça existencial precisamente pela sua capacidade de derrubar a República Islâmica. Porque teme o poderio do Ocidente, o Irão delineou uma política externa e de defesa que visa fazer face a uma ameaça existencial, ou seja, será a capacidade nuclear que proporcionará ao país alguma medida de segurança». O Ocidente em contrapartida teme um clima generalizado de insegurança regional ou ainda a crescente influência iraniana na região ou até mesmo além desta, até porque segundo o State Department Country Reports on Terrorism e o Patterns of Global Terrorism caracterizam o Irão como o “mais activo país patrocinador” de terrorismo.

Impera encontrar soluções. De todas provavelmente a acção militar terá consequências devastadoras para todo o mundo, como tal penso que o bom senso irá predominar, e que verifique-se abertura para possíveis negociações. Não acredito que as declarações apocalípticas de Hugo Chavéz, «”neste momento, existe uma ameaça nuclear” que “poderá ser o fim do mundo”», poderão corresponder à realidade, até porque por mais radicalismos que possamos assistir não é uma tragédia que pretendem alcançar.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Acerca de "Intelligence": Richards J. Heuer

Leitura obrigatória na área: Psychology of Intelligence Analysis de Richards J. Heuer. Fala-nos no aspecto psicológico do analista. Debrucei-me sobre os "biases" na estimativa de probabilidades, nomeadamente os erros cognitivos que podem influenciar a análise de dados! Muito interessante! Para breve fica um estudo mais aprofundado da obra! Para já e para aguçar o apetite, deixo uma passagem do autor, mas noutro trabalho: However, he had quickly concluded, as he said, that the answer to good intelligence analysis is not in the numbers, it’s in the head.[1]


[1] HEUER, Richards J., The Evolution of Structured Analytic Techniques- Discurso na National Academy of Science, National Research Council Committee on Behavioral and Social Science Research to Improve Intelligence Analysis for National Security, Washington, DC, 08 Dezembro, 2009. Disponível em http://www7.nationalacademies.org/bbcss/DNI_Heuer_Text.pdf, consultado em Novembro de 2011
 

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Sobre o conceito de BRIC na Teoria das Relações Internacionais- Por Nuno Canas Mendes

Deixo convosco um convidado que muito nos honra, o Professor Nuno Canas Mendes, docente do ISCSP e membro do Conselho Científico do Instituto do Oriente/ISCSP. Para além disto, também dá aulas no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. Para saberem mais acerca da actividade académica e de investigação do Professor Canas Mendes basta clicarem aqui (e escreverem o nome do professor na box). O texto abaixo permite-nos o aprofundamento teórico acerca do peso dos BRIC nas RI de hoje, sobretudo na área económica e nas relações desenvolvidas pelos seus membros. Esperamos que seja do vosso agrado, pois para nós foi também uma honra!


Sobre o conceito de BRIC na Teoria das Relações Internacionais, Nuno Canas Mendes

Numa visão de conjunto sobre a questão aqui tratada, rapidamente se poderia concluir que não há ainda um enquadramento teórico digno deste nome para descrever o fenómeno das economias emergentes, tendo até aqui prevalecido a aplicação de teorias sobre “middle powers” (Huelz, 2009 e Jordaan, 2003). O estudo do fenómeno e a avaliação do respectivo impacto na estrutura do sistema internacional tem suscitado um amplo debate sobre a classificação destes poderes, os quais já foram apodados de ‘would-be great powers’ (Hurrell, 2006), mas tem vingado o acrónimo proposto pelo célebre relatório da Goldmann-Sachs. Hurrell defende que está em causa a criação de uma identidade e ideologias auto-construídas, perfilhando assim uma opção construtivista e avançando que é o reconhecimento pelos pares e pelos outros Estados que define a categoria.
A literatura existente sobre a utilidade analítica e operacional do conceito de BRIC não é muito ampla, o mesmo acontecendo com a que contempla o peso específico do grupo, tão heterogéneo, de países em causa. Esta escassez faz-se sentir ainda com os estudos que se ocupam do seu lugar estrutural no sistema das relações internacionais, verificando-se uma tendência para se fixar sobre as relações com terceiros. As dinâmicas internas estão muito menos exploradas e neste sentido o projecto procurará desbravar terreno.
Se tivéssemos de estabelecer um perfil ‘médio’ para as economias emergentes (Hurrell, 2006), verificaríamos que têm uma forte identidade internacional, que desenvolveram capacidades materiais relevantes que lhes permite ter um certo grau de influência no mundo, que têm agendas distintas dos poderes médios tradicionais, que definem estratégias com um pendor reformista e que são poderes regionais (existe uma espécie de legitimação prévia no âmbito regional que lhes assegura o pretendido protagonismo regional)[1].
Assim, este texto procurar-se-á contribuir para o aprofundamento do debate teórico sobre os conceitos de ‘economia emergente’, ‘poder médio’ e BRIC, pela aplicação das teorias das relações internacionais ao caso em análise, com ênfase no realismo e no institucionalismo-liberalismo e, depois fazer o levantamento das características distintivas entre os BRIC e da capacidade dessas diferenças de gerarem sinergias ou obstáculos nas respectivas relações.


Os BRIC como categoria analítica:

O contributo do Realismo:

Segundo uma análise realista, o peso da economia é importante apenas na medida em que permite avaliar as capacidades de um Estado, i.e., o respectivo poder. A premissa essencial do realismo é por demais conhecida: num mundo em que o valor dos Estados soberanos continua a ser a referência no meio de uma anarquia tendencial resultante da ausência de uma autoridade ‘central’ cujas decisões tenham força de lei, o direito internacional impõe-se só enquanto os Estados o aceitem como ‘norma de conduta’, mas não os impede de continuar a sentir a necessidade de garantirem a sua segurança e de defender os seus interesses. Deste modo, as questões relacionada s com comércio e o investimento são matérias que os realistas subordinam à estrutura estabelecida das relações inter-estaduais. Ora o interesse acrescido dos realistas pelos BRIC não deriva tanto das relações económicas com eles desenvolvidas como do facto de se terem constituído como um grupo ‘novo’ de grandes potências capazes de ‘fazer sombra’ aos poderes tradicionais. Com efeito, serão as capacidades materiais de algum ou de todos estes países suficientes para serem considerados como ‘poderes maiores’ à escala global? E, se sim, que significado e que efeitos tem esta novidade no sistema interestadual? No plano militar, o mundo parece continuar inequivocamente unipolar, com a China, a Rússia e a Índia a representarem, respectivamente, 4.3, 3.0 e 2.1 por cento da despesa militar mundial (Armijo, 2007), valores modestos por comparação. No plano económico, os BRIC estão no top 10 de 15 economias e tenderão a subir no ranking. E poderão converter parte do seu poderio económico em maior capacidade militar…
Independentemente das variações e das diferenças entre cada um deles, a selecção dos indicadores é problemática, mas põe a tónica no desenvolvimento de uma multipolaridade, reforçada pelo eventual declínio da potência hegemónica, na medida em que pode dar lugar à ascensão da China ou à re-emergência da Rússia (Brasil e Índia não parecem ser considerados neste cenário). Num registo idêntico, sugere a ideia da formação de uma coligação anti-ocidental, pela articulação das potências em ascensão. Em todo o caso, estas visões mais pessimistas esbarram ainda com as tensões existentes entre a Rússia, a China e a Índia. É bem conhecida a disputa entre a China e a Rússia pelo espaço da Ásia Central ou as disputas fronteiriças entre a China e a Índia e a China e a Rússia. Se alguns deles aumenta o seu poder é imediatamente visto como uma ameaça o que compromete a coesão do grupo e dá vantagem aos EUA, com aliados que resultam do jogo de equilíbrio de poderes (a Europa face à Rússia, o Japão face à China) (Brawley, 2007). Esta lógica não se aplica à Índia e ao Brasil, cuja afirmação preocupa acima de tudo os vizinhos Paquistão (ainda mais do que a China) e Argentina, respectivamente.

O contributo do Institucionalismo-liberalismo

Esta corrente teórica considera que a existência de instituições internacionais constitui um incentivo e uma oportunidade para os Estados de fazerem as suas escolhas, ao mesmo tempo que permite uma maior cooperação com melhores resultados para todos. Os exemplos são múltiplos. O poder só interessa aos Estados na medida em que os outros Estados têm de ser persuadidos ou dissuadidos porque há um conflito de interesses. A participação activa nas instituições internacionais permite-lhes ter maior voz e maior influência, o que pode passar pela correcção de algumas assimetrias[2].
O valor da democracia – na resolução pacífica de conflitos e no seu compromisso com o humanitarismo e normas universais – cria uma cisão entre os BRIC: os regimes autoritários da China e da Rússia e os democráticos da Índia e do Brasil, notoriamente detentores de soft power, assumindo um papel de relevo global em questões como as mudanças climáticas ou a defesa de uma diplomacia sul-sul ou ainda a defesa do anti-Davos Fórum Social Mundial, proposto por Oded Grajew.
Em 2003, os dois países – Índia e Brasil - juntaram-se à África do Sul (através da Declaração de Brasília)[3] para conduzirem as negociações sobre agricultura em bloco com a OMC, o que deu origem ao G20, na sequência da cimeira de Cancun[4]. Tem-se assistido, igualmente, a uma maior participação dos BRIC nas instituições internacionais e inclusivamente a algum incentivo a esta participação: tal explica que a Rússia tenha aderido ao grupo dos países mais industrializados formando o G8 (e ainda o G8+5 incluindo já os três ausentes), bem como o já mencionado papel proeminente do Brasil e da Índia no G20.
No âmbito destas iniciativas, destaque ainda para o ‘trilateral arrangement’ Rússia-Índia-China que promove a reunião dos ministros dos negócios estrangeiros desde 2006. A cooperação entre os BRIC alargou-se também através da realização de outras reuniões de alto nível: cimeiras de ministros das finanças e de chefes de Estado e de governo. O Brasil e a Rússia tiveram neste particular um papel muito importante na transformação dos BRIC de mera noção financeira em grupo político genuíno (Glosny, 2010). Esta institucionalização, mais do que animada por uma espécie de ‘antagonismo mobilizador’, pretende assentar numa defesa realista dos interesses comuns, de partilha de experiências, de coordenação de estratégias e de desafio ao Ocidente (veja-se, por exemplo, o que sucedeu no quadro da OMC), o que não implica necessariamente, pelo menos para já, um revisionismo da ordem. A este propósito, um documento chinês de 2009, o Defense White Paper, é elucidativo: “China has become an important member of the international system, and the future and destiny of China have been increasingly closely connected with the international community. China cannot develop in isolation from the rest of the world, nor can the world enjoy prosperity and stability without China” (Glosny, 2010)
Mas o desenho actual de muitas instituições internacionais não reflecte ainda esta dinâmica, como mostra a sempre polémica composição do Conselho de Segurança da ONU. Com dois dos BRIC como membros permanentes, a entrada do Brasil e da Índia só tornaria o órgão mais complexo do que já é, para além de criar desconforto junto de países como o Japão, a África do Sul ou mesmo o Paquistão.


Sinergias e obstáculos: reforçar a cooperação intra-BRIC

Reforçar a cooperação intra-BRIC é um desafio que esbarra com as diferenças e com a competição entre si. Mas que ao mesmo tempo permite reforçar a liderança do mundo em desenvolvimento e o lançamento de uma plataforma activa que esbata alguns dos obstáculos ao seu reforço nas relações internacionais, designadamente a existência de regimes políticos diversos, economias com dimensões variáveis, e visões diferenciadas sobre questões políticas capitais, como o comércio livre, energia ou as reformas a introduzir nas instituições existentes.
A ultrapassagem destes constrangimentos põe em causa a coerência da acção dos BRIC como bloco, não obstante todas as medidas tomadas para estruturar esta cooperação. Mais ainda do que as divergências, o facto de três dos BRIC se verem reciprocamente como ameaças é um impedimento ao aprofundar da dinâmica de bloco, deixando o Brasil numa posição favorável, visto ser o único que não tem qualquer pendência com nenhum dos parceiros.


REFERÊNCIAS:

Armijo, Leslie Elliott (2007) – ‘The Brics Countries (Brazil, Rússia, Índia and China) as Analytical Category: Mirage or Insight?’, Asian Perspective, vol. 31, n.º 4 (7-42).
Brawley, Mark R. (2007) – ‘Building Blocks or a Bric Wall? Fitting U.S. Foreign Policy to the Shifting Distribution of Power’, Asian Perspective, vol. 31, n.º 4 (151-175).
Glosny, Michael (2010) – ‘China and the BRICS: A Real (but limited) Partnership in a Unipolar World’, Polity, Vol. 42, No. 1 January 2010 (100-129), http://www.scribd.com/doc/40252182/Glosny-China-and-the-BRICs-Clean-Sept-11-Version-ISA-Paper
Huelz, Cornelia (2009) – Middle Power Theories and Emerging Powers in International Political Economy: A Case Study of Brazil. A Thesis submitted to the University of Manchester for the degree of PhD in the Faculty of Humanities.
Hurrell, Andrew (2006) – ‘Hegemony, Liberalism and Global Order: What Space for Would-Be Great Powers?’, International Affairs, 82 (1), 5-19.
Jordaan, Eduard (2003) – ‘The Concept of a Middle Power in International Relations: Distinguishing between Emerging and Traditional Middle Powers’, Politikon, 30 (2), 165-181.


[1] Hurrell (2006) considera três traços de união entre os “would-be great powers”, a saber: 1) a variedade de recursos económicos, militares e políticos, a sua capacidade de contribuir para a produção de uma ordem internacional e o grau de coesão interna e capacidade de acção do Estado; 2) a crença partilhada num maior empenhamento e influência nos assuntos mundiais e a existência de um propósito e de um projecto que incita o apoio nacional; 3) a posição destes países à margem do paradigma liberal ocidental prevalecente, com os EUA como única superpotência.
[2] A título de exemplo, registe-se que no FMI e no Banco Mundial a China dispõe de menos votos do que a França e o Reino Unido apesar da sua economia ser incomparavelmente mais forte.
[3] Também conhecido como IBSA (acrónimo formado pelas iniciais dos três países), esta ‘iniciativa trilateral de desenvolvimento’ foi lançada para promover a cooperação e o intercâmbio sul-sul. Neste âmbito surgiu a IBSA Dialogue Fórum de que saiu a aludida Declaração de Brasília. Em 2004, foram definidas as Guidelines for Action, que previam a cooperação nas áreas da ciência e tecnologia, energia, saúde, transportes e turismo, comércio e investimento, infraestruturas, criação de emprego e apoio às pequenas e médias empresas, defesa e educação. Note-se que, em contraste com o grupo BRIC, este grupo reúne as três maiores democracias de cada continente do hemisfério sul.
[4] O acrescido peso específico nas negociações e instituições internacionais tem-se feito sentir em diversas ocasiões. A título de exemplo, refira-se que na ronda de Doha (2008), as inconcluídas negociações ocorreram entre quatro actores: EUA, EU, Índia e Brasil. Na Cimeira de Copenhague (2009), os líderes da China, Índia e Brasil e África do Sul negociaram a declaração final com os EUA, excluíndo a EU, Rússia, Japão e outros poderes globais.