quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A ONU no terreno cipriota

A resolução 186 de 1964[1] da ONU legitima a acção da UNFICYP como força mandatada para (re)estabelecer a paz. Para além disto e na sua essência apela ao Governo que mantenha a paz e a segurança e recomenda vivamente aos líderes das comunidades que actuem moderação. A missão inicial teve como consultores os governos de Chipre, Turquia e Grécia. Para além destes, o atrás mencionado Reino Unido. Até 15 de Dezembro, a resolução 1986 de 2011 dá legitimidade à ONU. Tendo em conta que o objecto deste trabalho são os cipriotas em si, não podia deixar de ter em atenção o seguinte: “(…) the Secretary-General’s firm belief that the responsibility for finding a solution lies first and foremost with the Cypriots themselves (…)”[2]. Este ponto manifestado na resolução contém subjacente a convicção da ONU que os cipriotas terão de ser integrados numa solução de futuro, independentemente do seu papel. E de certa forma, um aviso aos políticos. Aliás, nesta resolução está contida também recomendação interessante: o aviso que os políticos devem usar de retórica positiva, algo que tem sido também pedido por alguns académicos e grupos e iniciativas civis.
Têm sido evidentes os esforços da ONU, no que diz respeito à Buffer Zone e à Geen Line, o estímulo dos contactos constantes das comunidades, por forma a promover uma constante “união” de esforços “gregos” e “turcos”, com actividades que visam a colaboração ao nível económico, agrícola e de convívio social, bem como em actividades de carácter humanitário[1]. Este papel da ONU é sem dúvida importante para a inserção das populações civis na construção de um novo Chipre. De resto, a Buffer Zone é dos mais ricos territórios da ilha, ao nível da agricultura, da fauna e da flora, como tal parece-me firme intenção da ONU aproveitar estes dados para promover a união de povos. Pelo menos, é uma excelente oportunidade! Útil ou não? Logo veremos!
(cont)

[1] Cfr o texto da Resolução da ONU disponível em http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/186(1964) consultado em Dezembro de 2011.
[2] Cfr o texto da Resolução 1986 de 2011 disponível emhttp://www.un.org/en/peacekeeping/missions/unficyp/resolutions.shtml.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Fundamentalismo Islâmico


Numa altura que assistimos a associações erradas de determinados conceitos, deixo aqui exposta uma exposição do conceito “fundamentalismo islâmico”

Fundamentalismo

Contrariamente ao que podemos pensar, o termo fundamentalismo surge pela primeira vez, nos EUA, em 1920, sendo atribuída a sua existência aos cristãos protestantes anglo-saxões. Na época (1910 – 1915) teólogos protestantes haviam compilado artigos de natureza doutrinária, “ The Fundamentals”, uma reacção contra o declínio moral e espiritual que se alastrava no seio do protestantismo. «Em 1920, Curtis Lee Laws, Director do Jornal Baptista “The Watchman Examiner”, chegou a escrever que um fundamentalista é toda e qualquer pessoa que procura travar uma luta encarniçada em prole dos fundamentos da sua fé» (Costa. 2001:17).

Os seus seguidores e apoiantes seriam então denominados de “Fundamentalists”.

Fundamentalismo Islâmico

Actualmente o termo, fundamentalismo, está intrinsecamente relacionado com o Islão, grandemente ao 11 de Setembro, e à “propaganda” difundida pelo Ocidente, na “cruzada mundial contra o terror”.

Impera referir que no Islão não existindo uma separação entre esfera secular e religiosa, o fundamentalismo é uma força de carácter político.

São várias as causas que contribuíram para a existência do fundamentalismo islâmico, mas saliento aquela que influenciou grandemente o fenómeno, a imposição Ocidental de sistemas políticas que não vigaram e a tentativa dos países muçulmanos mantê-los impropriamente. Como refere Yves Lacoste em ''A Geopolítica do Mediterrâneo'' (2008), são “as brasas mal apagadas da História” que determinaram o rumo de determinados países árabes, especialmente no Mediterrâneo e Médio Oriente, onde estiveram sob colonialismo maioritariamente francês e britânico.

Mas outras causas podemos identificar, como a crise de identidade do mundo árabe, uma reacção ao laicismo, ao reformismo e à secularização, uma reacção etnocêntrica e xenófoba especialmente contra o Ocidente, a divisão do Império Otomano e o surgimento de inúmeros e diferente Estados contribuiu para o surgimento dos nacionalismos e ideologias transnacionais com o pan-arabismo, sentimento de humilhação, repulsa simultânea pelo colonialismo, neocolonialismo e pelo socialismo marxista, crise económica e social provocada pelo êxodo rural e pela urbanização explosiva e ainda o sentimento de humilhação dada a subordinação do mundo árabe em vários aspectos a grandes potências ocidentais.

Identificadas as causas é perceptível afirmar que o fundamentalismo islâmico tem três aspectos essenciais, como salienta Teresa de Almeida e Silva em “Islão e Fundamentalismo Islâmico” (2011), o totalitarismo, uma visão literalista da Shari´a e ainda ser coercivo e repressivo. É totalitário porque regula a vida social do indivíduo, a privada e a pública. Pressupõem que os princípios do Alcorão devem ser aplicados rigorosamente, daí que estabeleça uma visão literalista da Shari´a. E por fim é coercivo e repressivo dado não ser uma alternativa mas sim uma imposição, de carácter repressivo.

Falar de fundamentalismo islâmico é debruçar sobre um conceito de extrema complexidade. É certo que o conceito de fundamentalismo é extremamente recente, mas o mesmo não podemos afirmar do fundamentalismo islâmico. Analisando a história do Islão, encontramos vários indícios de fundamentalistas desde os seus primórdios, logo após a morte de Maomé, O Profeta, até à actualidade.

Impera salientar que «o Fundamentalismo Islâmico envolve o esforço para fazer regressar os muçulmanos ao caminho do Islão, o que suscita uma onda afirmativa de sentimento islâmico que penetra em todo o Mundo Islâmico, esgrimindo os princípios islâmicos fundamentais para a satisfação das necessidades e dos desafios da época contemporânea» (Costa.2011:17).

Bibliografia

COSTA, Hélder Santos (2001) Revivalismo Islâmico, Lisboa, ISCSP.

LACOSTA, Yves. (2008) A Geopolítica do Mediterrâneo, Edições 70.

SILVA, Teresa de Almeida e. (2011) Islão, Fundamentalismo Islâmico das Origens ao Século XXI, Pactor, Lisboa.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Economic Intelligence, uma estratégia para lá da crise

O livro Estudos de Intelligence, coordenado por Pedro Borges Graça, oferece aos leitores uma visão abrangente da Intelligence em várias vertentes, como militar, económica e civil, incidindo sobretudo na situação portuguesa e recorrendo não raras vezes a elementos de comparação do exterior. É um manual ideal para alunos e cidadãos em geral interessados na temática. Entre tantos pontos de interessante abordagem, vamos focar-nos na Intelligence aplicada à economia, por ser das áreas mais recentes e onde se perspectiva um maior crescimento.

“No actual processo de globalização económica em curso, estamos num momento de passagem da Era da Informação para a Era da Intelligence e no mundo dos negócios os custos da ignorância saem muito mais caros que os custos do conhecimento” (Graça, 2011, p. 178). É com esta frase que Pedro Borges Graça fecha o livro, mas a obra podia ter sido iniciada com ela, já que encerra em si a justificação da Intelligence não só económica, mas em todos as suas aplicações.

Apesar de a relevância do conhecimento que levou ao nascimento da Era da Informação não ser de pôr de parte, a verdade é que vivemos numa época com excesso de informação, algo que acaba por ser contraproducente, não só para a divulgação de ideias – dado que as pessoas tendem a dispersar-se e muitas vezes a desligarem perante tanta informação -, mas também para o encontro com a informação realmente importante. Um excesso de informação pode, efectivamente, servir para desviar os outros do essencial.

Num mundo cada vez mais complexo e interligado, caracterizado por uma nova ordem mundial em que surgem novos actores e em que os Estados perdem cada vez mais campo de acção para outros grupos, como organizações regionais, organizações não governamentais, grupos terroristas e grandes grupos económicos, é compreensível que as empresas assumam competências que antes estavam confinadas ao Estado, como por exemplo a defesa de objectivos económicos, e que todos estes actores, entre outros, invistam cada vez mais em Intelligence. Por exemplo, o Hezbollah possui uma “rede de Intelligence espalhada um pouco por todo o mundo, servindo-se dos seus apoiantes pare recolher informações”, de acordo com Bruno Almeida Marques (Graça, 2011, p. 78). O facto de o Hezbollah ter conseguido desmascarar agentes da CIA no Líbano, em Novembro deste ano, demonstra a dimensão desta realidade e a urgência de os Estados e de outros actores investirem verdadeiramente em Intelligence.


Ao abordar este assunto, António Rebelo de Sousa, presidente da Sociedade para o Financiamento do Desenvolvimento, realça que, apesar dos riscos ligados ao crime organizado e ao terrorismo, já não é essa a maior preocupação na Intelligence económica, mas sim a importância de estar na linha da frente em tecnologia, a relação com a concorrência directos e a necessidade de evitar riscos.

António Rebelo de Sousa fala no papel do Estado, que pode assumir a responsabilidade pela Intelligence, congregando interesses de várias empresas sob a mesma estratégia. Cada vez mais se vêem casos de interferência dos governos - acompanhando assim uma tendência de divórcio relativamente ao liberalismo puro e às suas consequências – sobretudo devido à falta de recursos financeiros por parte das empresas para investirem em Intelligence.

Destaque também para os benefícios de trocas de informações entre vários actores ou serviços, o que se torna mais eficaz quando os objectivos tendem a aproximar-se. Pedro Borges Graça sublinha que, “sendo a globalização em curso um fenómeno com uma forte componente económica e que influencia hoje marcadamente o comportamento dos Estados e tem um impacto directo nas soberanias nacionais, a actividade das empresas é portanto de facto estratégica” (Graça, 2006). Duncan Campbell, ao distinguir a Inteligência Competitiva ou Inteligência Micro-económica, da Inteligência Macro-económica (que visa conhecer as estratégias económicas de outros países), diz que a Intelligence económica, seja ela de que tipo for, “pode funcionar em forte ligação com outras formas de recolha de Intelligence”, como por exemplo dando conta de venda de armamento (Campbell, 2001, p. 97). O mesmo autor dá o exemplo das nações “párias”, como a Coreia do Norte, relativamente às quais conhecer as informações das suas empresas serve mais para “aferir as condições políticas e de estabilidade” do que propriamente conhecer as vantagens comerciais (Ibidem). No sentido inverso, Duncan Campbell diz que no início dos anos 90, a CIA terá fornecido informações às empresas norte-americanas “com o fito de que estas provocassem danos económicos” nas empresas europeias (Campbell, 2001, p. 134).

            
Nesta ligação entre Estado e empresas, António Rebelo de Sousa insiste na criação de mais instrumentos de intervenção, para além da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), com a responsabilidade de apoiar as empresas e implementar junto delas a estratégia traçada para a economia do país. Parece ser, efectivamente, esse o caminho seguido pelas empresas portuguesas, onde são praticamente inexistentes departamentos de Intelligence. As autoridades têm, assim, assumido a liderança em Intelligence económica, não só com a expansão de representações da AICEP, mas também com viagens de Estado onde predominam empresários de sectores estratégicos.

Interessa mais ter mecanismos institucionais especializados do que propriamente embaixadas quando é a economia que mais importa. Por exemplo, a AICEP estabeleceu-se em Singapura em 1997 e só dois anos depois é que foi aberta uma embaixada naquele local.

O distanciamento da Intelligence em relação à diplomacia é referido por vários autores do livro e em várias temáticas, sendo ponto assente que os serviços de informações prestam, pela sua natureza, um trabalho mais objectivo. Em realidade, também na área económica os serviços de informações são um instrumento privilegiado em países com os quais não se tem relações políticas próximas.

Também o modus operandi entre serviços de informações civis e empresariais é semelhante, ainda que as informações recolhidas para as empresas sejam distribuídas por mais destinatários, enquanto as informações civis se destinam, commumente, aos chefes de Governo ou de Estado. Importa ainda dizer que, ao contrário dos serviços de informações estatais (onde a desconfiança interna também deve existir), existe uma espécie de esquizofrenia relativamente à possibilidade de elementos da própria empresa fornecerem informações aos concorrentes.

Por outro lado, num mundo globalizado e com ameaças cada vez mais imprevisíveis, são necessárias respostas velozes e uma constante revisão do planeamento estratégico (Graça, 2011, p. 178), não existindo receitas mágicas. O essencial será actuar sobretudo, como defendem vários autores do livro “Estudos de Intelligence”, com pragmatismo, um dos “Sete Pilares da Sabedoria” indicados por T. E. Lawrence.

É por tudo isto que faz sentido Pedro Borges Graça dizer que mais do que o conhecimento, o importante nesta “Era da Intelligence” é evitar os “custos da ignorância” (Graça, 2011, p. 178).

O mesmo autor considera que a resposta, no caso específico português, tem de passar invariavelmente pelo crescimento do “patriotismo económico” (Graça, 2006), por uma “cultura exclusiva”, como a espanhola, a alemã ou a norte-americana – o que se nota por exemplo no língua, com os portugueses, por xebofolia, a disponibilizarem-se para falar a língua dos outros até mesmo em Portugal, quando a língua portuguesa tem tanta força, sendo a sexta língua com mais falantes em todo o mundo - em detrimento de uma “cultura inclusiva”, e por um crescimento do “pensamento estratégico autonomamente português” (Graça, 2006).

Urge entender, em Portugal e não só, que a Intelligence económica tem de dar passos largos, sobretudo nesta altura de crise e num mercado global. Por outras palavras, é importante perceber que chegou a Era da Intelligence, mas sobretudo encarar essa prática como uma forma mais segura de responder aos desafios económicos actuais. Não tem de ser apenas em chinês que a palavra crise significa oportunidade. Esta é a melhor altura para arriscar novas formas de pensar, novas estratégicas e, sobretudo, para um reencontro com o que nos torna únicos e que deve ser valorizado e explorado. Vários autores do livro “Estudos de Intelligence” falam na importância de não descurar o investimento em Intelligence, mas para tal, e acima de tudo, é essencial uma mudança de mentalidades.

Notas bibliográficas:
- CAMPBELL, Duncan (2001) “O mundo sob escuta: as capacidades de intercepção no século XXI”, Lisboa, Frenesi
.- GRAÇA, Pedro Borges (2006), “O tratamento da Informação Estratégica em Portugal: novos desafios na Era da Informação” in http://sites.google.com/site/pbgraca/texto7.
- GRAÇA, Pedro Borges (coord.) (2011), Estudos de Intelligence, Lisboa, Centro de Administração e Políticas Públicas do ISCSP.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A síndroma Brejnev de Putin por Pierre Bühler


Aconselho este artigo, de Pierre Bühler, publicado no Público, sobre a Rússia.

«O resultado das eleições legislativas russas de domingo já era esperado: venceu o partido Rússia Unida, liderado por Vladimir Putin. Da mesma forma, não há dúvida de que Putin irá ganhar as eleições presidenciais previstas para Março de 2012. Mas o entusiasmo do público que ratificou o governo de Putin durante uma década desapareceu, algo demonstrado pelo fraco desempenho do seu partido, Rússia Unida, nas recentes eleições à Duma.

Ao contrário da Europa, assolada por uma crise de dívida soberana, e dos Estados Unidos, cujos líderes discutem sobre a contenção do seu défice, a Rússia pode assemelhar-se a um oásis de estabilidade e continuidade. Mas essa continuidade lembra mais a zastoi, ou estagnação, da era Brejnev.

Os oito anos com um crescimento médio anual do PIB de 7%, durante o governo anterior de Putin (2000-2008), permitiram à Rússia pagar as suas dívidas, acumular quase 600 mil milhões de dólares em reservas de moeda estrangeira e juntar-se às principais economias emergentes. Uma década depois da crise de 1998 ter deixado a Rússia de rastos, os seus líderes gabaram-se de que o país poderia resistir à crise financeira de 2008.

Dados os fundamentos económicos da Rússia, a diminuição da popularidade de Putin pode parecer surpreendente. As previsões do Fundo Monetário Internacional, que apontam para 4% de crescimento em 2011 e nos anos subsequentes, posicionam a Rússia bem atrás da China e da Índia, mas muito à frente das taxas médias de crescimento nos países ricos do G-7. Além disso, o orçamento da Rússia estará equilibrado enquanto os preços do petróleo permanecem acima de 110 dólares por barril.

As tendências a longo prazo também melhoraram. O rápido declínio demográfico foi travado desde a viragem do século (uma época em que o número de caixões era superior ao número de berços, à proporção de 7 para 4), já que os subsídios generosos do governo para incentivar o nascimento do terceiro filho têm impulsionado a taxa de fertilidade, que cresceu de 1,16 filhos por mulher em 1999, para 1,58 em 2010. Este valor está ainda muito abaixo da taxa de reposição de 2,1, mas o aumento da taxa de fertilidade, em conjunto com medidas bem-sucedidas para reduzir a mortalidade masculina, reduziu o ritmo de diminuição da população.

No entanto, a Rússia continua a ser essencialmente um "Estado rendeiro" – isto é, um estado cuja principal fonte de receitas são as rendas – neste caso, de petróleo e gás – ao invés dos impostos, mantendo assim à distância as exigências de representação política. Em vez disso, o Estado é o alvo de empresários políticos que se empenham em conquistá-lo, a fim de conquistar as rendas que ele controla.

A Rússia tem a maioria das características habituais dos estados rendeiros: autocracia, instituições políticas e judiciais fracas, governo arbitrário, ausência de um Estado de direito, pouca transparência, restrições à liberdade de expressão, corrupção generalizada, clientelismo e nepotismo. Também comuns aos Estados rendeiros são os horizontes curtos de investimento, a vulnerabilidade à volatilidade dos preços dos produtos de base – ficando eufóricos com a sua subida e entrando em crise quando descem – e um sector industrial subdesenvolvido e pouco competitivo.

A Rússia de hoje é um reservatório gigante de matéria-prima e a sua economia depende em larga escala dos seus produtos primários – indústria mineira e perfuração petrolífera. A Rússia é o maior exportador mundial de petróleo e gás, possuindo mais de 25% do total das reservas comprovadas de gás. Estes produtos representam mais de dois terços das receitas de exportação do país e são a principal fonte de receita do Estado.

O impacto sobre a governança é demasiado previsível. Em 2011, a organização Transparência Internacional, na sua análise do índice de percepção de corrupção, posicionou a Rússia em 143.º lugar num total de 182 países, a par com a Nigéria, e em 182.º lugar, num total de 210, no que diz respeito ao "controlo da corrupção", um dos indicadores de governança a nível mundial do Banco Mundial. Em relação ao Estado de direito, houve apenas uma melhoria mínima, com a Rússia a situar-se na 156.ª posição.

Entretanto, a infra-estrutura está a desmoronar-se, até mesmo dentro da indústria extractiva vital, ao mesmo tempo que o fabrico não é competitivo a nível internacional. A indústria de armamento russa perdeu a forte posição que tinha junto da Índia e a da China, que outrora foram os seus dois principais clientes. Apesar da propaganda sobre a nanotecnologia e um "Vale do Silício russo" no Skolkovo, as despesas em I&D (Investigação e Desenvolvimento) representam apenas 1/15 do nível dos EUA e um quarto do da China. Como proporção do PIB, foram reduzidas para metade desde o início da década de 1990 e representam agora apenas 1% do PIB. Os cientistas e investigadores, que em tempos foram o orgulho da União Soviética, desapareceram, atraídos muitas vezes por oportunidades mais gratificantes, a nível nacional ou internacional.Com efeito, as universidades russas estão quase ausentes dos rankings mundiais: apenas duas figuram na lista Top-500 da Universidade de Xangai e, numa posição bastante baixa, entre as 400 classificadas pelo Times Higher Education Supplement. A Rússia também tem uma posição fraca – 63.º lugar – no Índice de Competitividade Global publicado pelo Fórum Económico Mundial (World Economic Forum), estando muito atrás de todos os países desenvolvidos e até mesmo de muitos países em desenvolvimento. O mesmo se aplica à capacidade de inovação e à tecnologia.

No entanto, há sinais de esperança. A Rússia já não está aquém do mundo desenvolvido no que diz respeito ao uso da Internet, que tem proporcionado espaço para o discurso não regulamentado, permitindo aos utilizadores contornar o órgão noticioso oficial que é esmagadoramente pró-Putin. Além disso, após longas negociações, a Rússia chegou recentemente um acordo para integrar a Organização Mundial do Comércio, o que implica a necessidade de cumprir todas as obrigações em matéria de transparência e regras de negociação.

Mas a transformação completa da economia da Rússia continua a ser duvidosa. Um dos principais economistas independentes da Rússia, Sergei Guriev, reitor da Escola da Nova Economia, em Moscovo, afirmou, em 2010, que "as reformas significativas são altamente improváveis – pela simples razão de que iriam colidir com os interesses das elites dominantes da Rússia. Em qualquer país rico em recursos e antidemocrático, a classe política e os interesses comerciais que o rodeiam têm pouco ou nenhum incentivo para apoiar direitos de propriedade mais fortes, Estado de direito e concorrência. Na verdade, essas mudanças estruturais iriam enfraquecer o domínio da elite no poder político e económico. O status quo – regras opacas, tomadas de decisão arbitrárias e défice de responsabilidade – permite o enriquecimento de quem está lá dentro, especialmente através da obtenção de uma percentagem das receitas da exportação de produtos".

Ao assinalar o vigésimo aniversário do colapso da União Soviética este Natal, a Rússia terá muito que comemorar. Infelizmente, o que não mudou vai dar-lhe muito com que se lamentar».

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Victor Ângelo: o contacto com as populações ao serviço da ONU

Victor Ângelo é um homem que dispensa apresentações no campo das RI, graças à sua experiência de mais de 30 anos na ONU. É um notável colunista na Visão, mas também podem segui-lo com mais regularidade no seu blogue. Há cerca de um mês, o Dr. Victor Ângelo deu-nos uma excelente aula no seminário de Gestão de Crises e na altura questionei-o acerca do nível das Forças Armadas que encontrou no terreno. Hoje, fica um texto acerca do contacto com as populações no terreno.


A minha interacção com as populações, nas zonas de conflito em que servi, revelou que a preocupação mais urgente é a de restabelecer um mínimo de segurança colectiva. Ou seja, as pessoas estão ansiosas por voltar à normalidade que caracterizava as suas vidas, antes da violência e da crise. Por isso, o que mais desejam é o regresso a um ambiente de segurança. Poderão, assim, voltar às suas actividades económicas, mesmo que sejam apenas ao nível da subsistência, e recuperar uma parcela importante da dignidade perdida.

Em seguida, para que a segurança das comunidades se torne durável, é preciso que as missões de paz apoiem as iniciativas locais de resolução de conflitos e que as interferências políticas provenientes da capital sejam minimizadas. É preciso, por isso, estabelecer uma relação estruturada com os líderes das comunidades, ajudá-los na arbitragem de conflitos de interesses que possam provocar o reacender da violência, e, ao mesmo tempo, garantir uma certa autonomia em relação ao poder central.

Convém tratar de outras questões básicas, sem demora, ao mesmo tempo que se tenta resolver a questão da segurança. Existem certas necessidades imediatas, ligadas às dimensões humanas do conceito de segurança, como a disponibilidade de água potável e de cuidados primários de saúde, que devem fazer parte do pacote inicial. Para além de responderem a aspirações concretas das populações, têm a vantagem de mostrar que a paz traz dividendos tangíveis. 

As missões de paz têm ainda muito que aprender, no que respeita às ligações com as organizações comunitárias ao nível local. Existem algumas experiências válidas, que precisam de ser sistematizadas e difundidas.
Victor Ângelo

Myanmar e as novas oportunidades

A República da União de Myanmar decidiu dar alguns sinais tímidos de abertura e a comunidade internacional estendeu-lhe várias passadeiras. Mas terá o regime militar vontade de abrir tanto os braços? E que papel assumirá a China no país perante o aproximar do Ocidente?

Contrariando a falta de esperança no governo civil presidido por Thein Sein - fiel ao general Than Shwe, o líder da Junta Militar que governou o país de 1992 até 2010 - o novo executivo tem dado alguns passos em direcção à democratização: Suu Kyi, líder do principal partido da oposição e Prémio Nobel da Paz 1991, deixou finalmente de estar em prisão domiciliária e iniciaram-se as negociações entre ao seu partido, a Liga Nacional pela Democracia, e o governo, dezenas de presos políticos foram libertados e os sindicatos foram considerados legais.

O nome de Thein Sein, que consta da lista de pessoas visadas por sanções da União Europeia, ficou manchado por ter recusado, num primeiro momento, ajuda internacional às vítimas do ciclone de 2008. Ainda assim, foi ele quem apelou para o fim das fortes sanções políticas e económicas impostas ao país. Isto porque, apesar dos recursos estratégicos de que dispõe, como gás, petróleo e pedras
preciosas, o Myanmar é dos países mais podres do sudeste asiático, muito por culpa do isolamento a que se vetou. Basta recordar que, antes da ditadura, sob o controlo britânico, era um dos mais ricos da
região e o maior exportador mundial de arroz. Recentemente, tem-se tornado num grande produtor de ópio, uma actividade que não pode ser dissociada do crime organizado e do terrorismo.

Esta progressiva abertura, continua, todavia, à semelhança daquilo a que temos assistido na China, a ficar manchada por casos gritantes de violações dos direitos humanos. Denúncias recentes falam em falta de água e de medicamentos entre prisioneiros que iniciaram uma grave de fome.

Numa altura em que a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) procura consolidar mecanismos mais efectivos de cooperação, para que os seus membros resolvam problemas comuns e ganhem peso na comunidade internacional, o Myanmar foi convidado a presidir à associação, num
acto que mistura esperança com uma tentativa de responsabilização.

Recorde-se que a ASEAN, apesar da sua política de não interferência, foi dando ao longo do tempo sinais de esperança ao Myanmar, como apoio técnico e financeiro para que o país alcançasse os requisitos necessários com vista a tornar-se membro do bloco.

Também os Estados Unidos reagiram com um passo histórico: a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, visita o Myanmar. Apesar de saudar os progressos, o presidente norte-americano, Barack Obama, lembrou que “as violações dos direitos humanos ainda persistem”. “Por isso, vamos continuar a falar claramente sobre os passos que têm de ser dados pelo Governo da
Birmânia para que possa ter uma melhor relação com os EUA”, acrescentou.

Este aproximar acontece numa altura em que as relações de Naypyidaw (capital do Myanmar desde 2005) com Pequim, que sempre se pautaram por uma grande proximidade, com fortes relações económicas e com a China a seguir a sua política de não interferência, conhece uma distensão,
sobretudo após a decisão do Myanmar de colocar na gaveta o projecto da barragem de Myitsone.

A aproximação norte-americana ao Myanmar deve ser vista também à luz dos recursos importantes da região e ainda tendo em atenção a situação estratégica do país naquele mapa asiático, entre os dois gigantes China e Índia, com os quais tem mantido relações cordiais, e ligando o Médio Oriente ao Sudeste Asiático num corredor por onde passam muitos terroristas fugidos do Afeganistão.

Os Estados Unidos têm apoiado muitos executivos do Sudeste Asiático no âmbito da luta contra o terrorismo que travam mundialmente. Logo, também a nível de segurança os EUA devem ter interesses bem definidos para o Myanmar.

Quer penda para o país liderado por Barack Obama, quer se vire para o de Hu Jintao, esta abertura só trará benefícios a Thein Sein, sobretudo se ele conseguir negociar acordos favoráveis ao país e não
sucumbir ao poderio económico dos outros. Caso contrário, poder dar-se o caso de ver evaporarem-se os recursos naturais, enquanto o país permanece na lista dos mais pobres do globo.

NOTA: Este texto foi escrito a 19 de Novembro de 2011.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Irão a caminho da Guerra" por Joschka Fischer


Na sequência dos recentes acontecimentos no Irão, deixo um artigo de opinião de Joschka Fischer, (ministro dos negócios estrangeiros da Alemanha e vice-chanceler entre 1998 a 2005, foi líder do Partido Verde alemão durante quase 20 anos), publicado no Público, esta semana.

"Irão a caminho da Guerra"

«Enquanto a Europa continua preocupada com a sua própria crise em câmara lenta, e outras potências mundiais continuam a ser hipnotizadas pelo espectáculo bizarro dos inúmeros esforços das instituições europeias em salvarem o euro (e dessa forma o sistema financeiro global), nuvens de guerra concentram-se em massa sobre o Irão, uma vez mais.

Ao longo de vários anos, o Irão tem promovido tanto um programa nuclear, como também o desenvolvimento de mísseis de longo alcance, o que aponta somente para uma conclusão: os líderes do país estão empenhados em fabricar armas nucleares, ou pelo menos em alcançar a tecnologia até ao limiar, onde somente uma única decisão política é necessária para atingir esse fim.

A última linha de acção iria, sem dúvida, manter o Irão no âmbito do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), de que é signatário. Mas não pode existir nenhuma dúvida razoável sobre as intenções das autoridades iranianas. De outra forma, os programas nucleares e mísseis seriam um desperdício de dinheiro. Afinal de contas, o Irão não precisa de tecnologia de enriquecimento de urânio. O país só tem um reactor nuclear civil, com barras de combustível fornecidas pela Rússia, e a tecnologia iraniana que está actualmente a ser desenvolvida não pode ser utilizada nisso.
Mas o enriquecimento de urânio faz muito sentido para quem quer uma arma nuclear; na verdade, para esse propósito, o enriquecimento é indispensável. Além do mais, o Irão está a construir um reactor a água pesada, supostamente para fins de investigação, mas cuja existência também é necessária para fabricar uma bomba de plutónio.

O Irão, em violação do TNP, escondeu partes substanciais deste programa. O país também gastou milhões de dólares em compras ilegais, de tecnologias de enriquecimento e programas de armas nucleares, aos cientistas nucleares paquistaneses e ao negociante do mercado negro A.Q. Khan, o “pai da bomba paquistanesa”. O Irão tentou ocultar estas transacções durante anos, até que a sua máscara foi descoberta quando a Líbia começou a cooperar com o Ocidente e expôs a rede de Khan.

Um Irão munido com armas nucleares (ou uma decisão política para as possuir) alteraria, drasticamente, o equilíbrio estratégico do Médio Oriente. Na melhor das hipóteses, uma corrida ao armamento nuclear ameaçaria consumir esta região, já instável, o que colocaria em risco o TNP, com extensas consequências globais.

Na pior das hipóteses, as armas nucleares serviriam a política externa “revolucionária” do Irão na região, que tem sido aplicada pelos líderes do país desde o nascimento da República Islâmica em 1979. A combinação de uma política externa anti-status quo com armas nucleares e mísseis é um pesadelo não só para Israel, que pelo menos tem capacidade de segunda ofensiva, mas também para os vizinhos árabes não-nucleares do Irão e para a Turquia.

De facto, os países do Golfo, incluindo a Arábia Saudita, sentem-se existencialmente mais ameaçados pelo Irão do que Israel. O perfil de segurança da Europa mudaria, também drasticamente, caso o Irão possuísse ogivas nucleares e mísseis de longo alcance.

Todas as tentativas de negociação não levaram a lugar nenhum, com o Irão a continuar a enriquecer urânio e a melhorar a sua tecnologia nuclear. As sanções, apesar de úteis, só funcionam a muito longo prazo e uma mudança no equilíbrio de poderes dentro do país não se prevê a curto prazo. Sendo assim, trata-se só de uma questão de tempo – e não muito tempo – até que as nações vizinhas do Irão, e a comunidade internacional, se confrontarão com uma fatídica escolha: ou aceitam o Irão como uma potência nuclear, ou decidem que a mera perspectiva, à medida que se torna mais realista, está a conduzir à guerra.

O presidente Barack Obama já deixou claro que os Estados Unidos não aceitarão o Irão como uma potência nuclear, em nenhuma circunstância. O mesmo também se aplica para Israel e para os vizinhos árabes do Irão no Golfo.

O próximo ano promete ser crítico. O governo israelita sugeriu, recentemente, que o Irão atingiria o limiar nuclear num prazo de nove meses e que poderia tornar-se numa grande questão, na longa corrida eleitoral à presidência norte-americana, em Novembro de 2012. E é difícil de imaginar que o actual governo de Israel ficará impassível enquanto o Irão se torna numa potência nuclear (ou numa quase-potência nuclear). Por outro lado, falar de intervenção militar – a qual, dadas as circunstâncias, resumir-se-á largamente aos ataques aéreos – é barato. Há sérias dúvidas sobre a possibilidade do programa nuclear iraniano ser eliminado por meio aéreo. Na verdade, com a probabilidade de grande parte do mundo condenar qualquer ataque, a intervenção militar poderia esclarecer o caminho diplomático para uma bomba iraniana.

É melhor não pensar no que o Médio Oriente poderia parecer, após este tipo de confronto. As forças da oposição iranianas seriam, provavelmente, as primeiras vítimas da acção militar ocidental e, noutros locais da região, a Primavera Árabe submergiria, provavelmente, sob uma massiva onda de solidariedade anti-Ocidente com o Irão. A região seria novamente empurrada para a violência e para o terror, ao invés de continuar a sua transformação de baixo para cima. Os efeitos na economia mundial não serão menos significativos, sem falar das consequências humanitárias.

Uma última tentativa numa solução diplomática afigura-se improvável, dado que a questão nuclear desempenha um papel decisivo na luta de facções do regime iraniano, no qual aquele que se compromete a favorecer pode ser considerado o perdedor. Além do mais, os líderes iranianos parecem assumir que o país é grande demais e poderoso demais para ser controlado por sanções ou ataques aéreos.

Historicamente, a estrada para o desastre tem sido geralmente feita de boas intenções e de erros graves de julgamento. Isso poderia acontecer novamente em 2012, quando os erros de cálculo em todas as partes poderiam limpar o caminho para a guerra ou para um Irão como potência nuclear – ou, em termos bastantes realistas, para ambas. Uma nova escalada no Médio Oriente culminará nestas deploráveis alternativas, mais cedo do que o previsto, a menos que seja encontrada uma solução diplomática (ou a menos que a diplomacia possa pelo menos ganhar tempo).

Infelizmente, esse cenário é pouco provável no próximo ano. Na ausência de qualquer caminho viável para um compromisso diplomático norte-americano, com o Irão, o fardo de organizar, convocar e conduzir tais negociações altamente sensíveis, cairá sobre a Europa. E os líderes europeus, como o Irão sabe muito bem, têm outras coisas nas suas mentes».

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O Comercio marítimo no Sudeste Asiático

A região Ásia-Pacífico pode ser identificada como um centro gravitacional de comércio, demonstrado pela dimensão das frotas regionais, pelos grandes portos (8 dos 10 maiores portos do mundo encontram-se na região e de salientar que 6 são na Republica Popular da China) e pelo número de navios que navegam na região, no entanto várias rotas marítimas, com maior densidade de tráfego, atravessam uma região com algumas disputas territoriais entre vários Estados, pelo que a consequente instabilidade tem prevalecido (Geise, T., p6, 2011).
Este estatuto como centro gravitacional segue o crescimento de toda a região. A RPC é, sem dúvida, o driver mais relevante nessa matriz, não podendo descurar, no entanto, as economias do Japão, Coreia do Sul, Taiwan, bem como toda a sub-região do Sudeste Asiático com a sua elevada dependência do comércio marítimo. Este crescimento regional tem provocado uma crescente
demanda por contentores e navios para transportá-los, fazendo aumentar o volume de negócios dos portos regionais e do tráfego marítimo regional, estimulado por uma contínua intensificação das trocas comerciais inter e intra-regional. Este crescimento regional, além disso, desencadeou demandas crescentes de energia, necessária para sustentar esse crescimento, dependências que variam entre os 60% e 90% para os Estados do Nordeste Asiático, o que explica porque o aumento do tráfego de contentores é acompanhado por um aumento no tráfego de petroleiros (Geise, T.,p6, 2011).
Cerca de 80% da região do Sudeste Asiático é constituída por mar, as ilhas e penínsulas da região estão situadas entre os oceanos Pacífico e Índico, sendo como uma fronteira para principais artérias de comunicação e comércio mundial. De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), o crescimento económico e o comércio de mercadorias por via marítima estão intimamente relacionados. Nos últimos anos, a quota da Ásia no total de mercadorias transportadas por mar a bordo dos navios aumentou para 41 por cento, seguido, por ordem decrescente, pelas Américas, Europa, África e Oceânia.
O sector de transporte marítimo que mais tem crescido é o de contentores, o qual a Ásia
detém cerca de 60% do global, segundo o “Relatório do transporte marítimo de 2010”, tendo sido a sua quota, em 1995, de 50%. Este é o tipo de transporte, dos principais tipos de carga (granel, petróleo e contentores) que mais tem crescido nos últimos anos. Outro factor importante, que demonstra a importância que a região Ásia-Pacífico tem no comércio marítimo mundial é o facto de 8 dos 10 portos mais movimentados no mundo estarem localizados na Ásia oriental, tal
como referido anteriormente e como demonstrado na tabela abaixo.

Hoje em dia a população do Sudeste Asiático reside ou depende economicamente do mar que é contudo, ao mesmo tempo, a fonte de uma multiplicidade de ameaças e factores de instabilidade que colocam em perigo não só a prosperidade das populações locais como também ameaçam directamente a segurança dos Estados (Bradford, J. F., p1, 2005).
Cerca de 2/3 do abastecimento de recursos energéticos pela Coreia do Sul e mais de 60% por parte do Japão e de Taiwan transitam anualmente pela região do Sudeste Asiático. Por outro lado, pensa-se que o Mar do Sul da China poderá conter uma larga variedade de recursos energéticos (incluindo petróleo e gás natural) e minerais, mas a sua exploração tem sido comprometida pelo conflito existente entre diversos países em torno de reivindicações de soberania.
Dependência de Petróleo Importado na Ásia, 1971 - 2030.

Acerca do Egipto e da revolução



Aos interessados deixo duas sugestões de leitura sobre os recentes acontecimentos no Egipto.

1º - “Tahrir os Dias da Revolução” de Alexandra Lucas Coelho, relata a sua experiência no Cairo durante o mês de Fevereiro, já nos finais do governo de Mubarak. O olhar de um estrangeiro sob uma sociedade em revolta que desejava por mudanças. «”Tahrir - Os Dias da Revolução” não é uma reportagem, é o relato inédito dessa experiência».

Autora de “Caderno Afegão: Um Diário de Viagem” (2009) e “Viva México” (2010), Alexandra Lucas Coelho, nasceu em 1967 em Lisboa. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, estreia-se na rádio na década de 80. Entre 1991 e 1998 foi jornalista da RDP. Desde 1998 trabalha no jornal Público. Em 2005 – 2006 esteve em Jerusalém como correspondente e desde final de 2010 vive no Rio de Janeiro como correspondente do Público.

«Nos próximos dias será assim. Tahrir vai oscilar entre o trânsito e o pós-revolução, incerto e tantas vezes desapontador, como tudo o que se segue aos momentos extraordinários» - in "Tahrir os Dias da Revolução" pág. 97

2º - “O Estado do Egito” de Alaa Al Aswany, relata a situação da sociedade egípcia aos olhos de um dos romancistas mais aclamados, considerado dos maiores escritores do Médio Oriente e um dos 500 muçulmanos mais influentes do mundo.

Alaa Al Aswany analisa os principais problemas do seu país, como ainda levanta uma série de questões inquietantes sobre o futuro do Estado Egípcio. «Quem será o novo presidente e como será eleito num país em que até agora só simplórios, oportunistas e comediantes é que estavam envolvidos em eleições? Qual será o papel a desempenhar pela Irmandade Muçulmana? Como poderão ser implementadas reformas democráticas num país habituado a contradições, tais como a de a autoridade religiosa que recorre ao método da tortura?»

«Enquanto a arrastava pelo chão, dando-lhe pontapés com as botas, ela não implorou, não pediu ajuda, nem apelou ao brutamontes. Entoava: "Liberdade, liberdade, viva o Egito, viva o Egito." E nesse momento o general teve uma estranha sensação. Apercebeu-se de que podia matar aquela rapariga, despedaçá-la, se quisesse, mas não conseguia derrotá-la, humilhá-la ou quebrar a sua vontade. Sentiu que apesar de todo o seu poder saía derrotado e que era aquela pobre rapariga brutalizada e violentada que iria triunfar» - in "O Estado do Egito"

domingo, 27 de novembro de 2011

Irão: Parte I

Aqui ficam uma série de reflexões sobre o Irão

Irão: Actor global

Antes de mais, importa mencionar que o Irão, enquanto regime teocrático, centra muitos poderes no líder religioso, Ali Khamenei, nomeadamente aqueles que por norma são destinados ao presidente da República, supervisando e delineando o rumo político do país. Para além disto, “O Supremo Líder do Irão” nomeia os titulares dos principais cargos e órgãos. O presidente, cargo actualmente ocupado por Mahmoud Ahmadinejad, é a segunda figura do país e é eleito por sufrágio universal. Ainda assim os candidatos passam pela ratificação do Conselho de Guardiões, para garantir a defesa do ideal da revolução islâmica por parte de quem quer chegar à presidência.
Apesar da constante instabilidade da região, o Irão, graças ao seu posicionamento e vasto conhecimento da multiplicidade de línguas e cultura, tem se mantido como um “mestre” do “soft power”, mantendo a sua influência activa na zona. Se é certo que se verifica um recrudescimento das suas posições externas, temos sempre que levar em conta as necessidades internas do próprio Irão, principalmente ao nível da segurança. Observa bem os “reports” da Chatham House sobre o Médio Oriente, que o Irão, estando rodeado por países com forças americanas no terreno, quer nas crises no Iraque e Afeganistão, quer na Turquia, com as bases. No noroeste está o Cáucaso, também sempre em conflito. Ou seja, um Irão fraco e sem voz activa poderia significar o fim da tal independência advogada pela Revolução Islâmica. Assim, torna-se fácil a percepção das duras posições do regime presidido por Ahmadinejad. Aliás, a eleição do sucessor do moderado Khatami representou em si uma viragem no país, uma vez que entrou em conflito também com a elite política e abastada do Irão, graças ao conservadorismo das suas convicções. O tom vincadamente inflamatório da sua retórica tem abanado a estruturas privadas, pouco dadas a conservadorismo no consumo. Até que ponto isto pode prejudicar a economia? Ainda se está para saber, agora é certo que estas elites não estão com a vida facilitada.
No plano externo, ao contrário dos antecessores, Mahmoud Ahmadinejad tem optado por uma via de confrontação com o Ocidente. E tem astutamente escolhido alguns parceiros, sempre por oposição aos EUA. Dentro deste âmbito, basta lembrarmos as provocações ao Estado de Israel, referindo que este deveria desaparecer, aproximando-se consequentemente a “organizações de libertação” como o Hamas e o Hezbollah. A somar a isto, oficialmente o governo de Ahmadinejad nega a existência do Holocausto, mais uma vez em provocação frontal aos EUA e Israel. Apesar de administração Obama optar por via mais pacífica, Ahmadinejad tem insistido nestas e noutras provocações, como a ingerência Xiita nos quadros governamentais iraquianos e amizade com a Síria. Mas citando Pio Penna Filho “o que não podemos e nem devemos fazer é concordar com o isolamento completo do Irã, ainda mais quando sabemos que vivemos num mundo repleto de contradições e de muita hipocrisia, afinal de contas não presenciamos recentemente uma política externa absolutamente agressiva (e que se utilizou inclusive da tortura) por parte de uma das mais importantes democracias do Ocidente?”[1] A verdade é que o Irão tem-se mantido activo em várias frentes. Tem sempre algo a dizer, mais do que não seja pelo silêncio. Tem sido também uma sombra nas relações EUA/Rússia. Nem a própria ONU escapa às “recomendações” iranianas.


[1] FILHO, Pio Pena, O Irã e sua Inserção Internacional, disponível em www.mundorama.net, consultado em 12 de Dezembro de 2010.


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O Conceito de Segurança Humana

"Mais do que nunca vivemos num mundo interligado. As crises actuais ameaçam as vidas de milhões de homens, mulheres e crianças. Aumentam a insegurança humana e comprometem os avanços rumo à realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio” (Ban Ki-moon, Conferência sobre Segurança Humana, Tóquio, 2010).

De facto, o conceito de segurança humana patente nas declarações do Secretário-Geral da ONU surge nos anos de 1990 e alargou a noção tradicional de segurança, centrada na segurança dos Estados.

Com o fim do confronto bipolar consolida-se uma nova agenda internacional em que emergem novos temas, novas ameaças e novos actores que desafiam as perspectivas do realismo clássico e que, ao mesmo tempo, questionam o estatuto de reivindicação moral em que o Estado soberano se assume como guardião exclusivo da segurança dos indivíduos.

Neste contexto, a segurança passa a ser entendida como uma condição que os cidadãos têm direito de usufruir como membros da sociedade onde se inserem e, em última instância, como membros da própria Humanidade (Valquez Apud Xavier, 2010: 96). A defesa da pessoa humana deixa de ser encarada como uma prerrogativa natural do Estado-nação soberano para se assumir potencialmente como uma responsabilidade da comunidade internacional.

Por outro lado, devemos ter em consideração, quando se fala de segurança humana das debilidades que o conceito suporta, nomeadamente da sua instrumentalização por parte de interesses políticos e estratégicos.

Segundo muitos académicos, isso tem sido bastante visível após os atentados de 11 de Setembro de 2001. Com base na “segurança humana” e à luz da tese da “responsabilidade de proteger” há o risco de “intervenções humanitárias” de países do centro do sistema internacional em países periféricos em conflito ou em crise. Este tipo de intervenções serve-se de razões humanitárias para justificar uma intervenção militar com objectivos políticos bem delineados.

Em 2003 no Iraque a abordagem de segurança humana fundamentou de certa forma a acção militar, uma vez, que o governo de Saddan Hussein violava a segurança humana dos iraquianos.

Assim, a segurança humana fez emergir o consenso na comunidade internacional de que um Estado não pode desrespeitar os direitos dos seus cidadãos sem uma reprovação internacional e até mesmo de uma intervenção. Contudo, a queda de Saddam Hussein não resolveu o problema da insegurança do povo iraquiano, que se encontra numa situação mais vulnerável e sob maior risco que antes da intervenção externa (Oliveira, 2009: 8-12).

Em suma, o conceito de segurança humana traz potencialidades e debilidades, mas, por ser um conceito novo há ainda muito que fazer de modo a ampliar as suas potencialidades e minimizar as suas deficiências. Problemas que vão desde a fome, pobreza, aos conflitos armados, degradação ambiental e ao terrorismo internacional constituem uma ameaça à segurança humana e mostram que é necessário conceber soluções integradas e, simultaneamente, centradas nas pessoas.

Referências

Webgrafia

OLIVEIRA, Adriana Bazzano (2009), “O fim da Guerra Fria e os estudos sobre segurança internacional” in http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Aurora/OLIVEIRA.pdf

XAVIER, Ana Isabel Marques (2010), “A União Europeia e a Segurança Humana: um actor de gestão de crises em busca de uma cultura estratégica? Análise e considerações prospectivas” in https://estudogeral.sib.uc.pt/.../A%20União%20Europeia%20e%20a%20Segurança%20Humana.pdf

Sites

http://www.segurancahumana.eu/
http://www.unric.org/pt/
http://www.undp.org/

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

E da “primavera árabe” passamos a um “outono árabe”? - O caso do Egipto


Passados nove meses após a queda de Hosni Mubarak e a uma semana das eleições legislativas, Tahrir assistiu a novas revoltas. A emblemática praça que derrubou um líder é de novo palco principal para novos acontecimentos.

A 18 de Novembro cerca de 50 mil egípcios saíam à rua exigindo a demissão do Conselho Militar. Saliento que o mesmo, Conselho Supremo das Forças Armadas, dirige o país desde a queda de Mubarak em Fevereiro, sendo presidido pelo marechal Hussein Tantaoui (ex-ministro da Defesa do regime de Mubarak).

Se Tahrir foi palco da luta de um povo contra um regime repressivo, esse mesmo povo vê a permanência dos militares no poder como a continuação desse passado. «“Os militares no poder fazem parte do antigo regime e é com ele que se preocupam, não com o povo. Por isso, pedimos que se demitam o quanto antes”». Quando grande parte dos egípcios pretendiam uma ruptura e o início de uma nova era pós Mubarak, assistem ao oposto.

No passado fim-de-semana, os confrontos intensificaram-se, chegando as forças de segurança a dispararem gás lacrimogéneo e balas de borracha contra os revoltosos que exigiam o fim da junta militar e a transposição do poder para civis. Agravando ainda a situação, apesar das eleições previstas para o próximo dia 28 deste mês, as primeiras desde o afastamento do antigo líder, o Conselho Supremo das Forças Armadas permanecerá no poder, sendo acusados de estarem a preparar o domínio ao próximo governo.

Dada a violência usada nos confrontos, já constam cerca de 40 vítimas mortais e ainda os milhares de feridos, mas tal não desmotiva os revoltosos a continuar a lutar. Como menciona o Washington Post, «“egyptian blood is being spilled. It’s still the January revolution. We’re going to turn it into Libya,” one man chanted, as the crowd clapped along. “Oh martyr, whose soul is resting, your right will be returned. Kill. Kill. Kill. Every bullet makes us stronger”».

Mahamed Elbaradei, Nobel da Paz referia «queremos ver o poder do conselho militar totalmente nas mãos de um governo de unidade nacional composto por civis. A função do conselho militar deve ser apenas a defesa das fronteiras».

Na passada segunda-feira (21/11), o governo interino demitiu-se, mas os protestos não cessaram. Hussein Tantawi, líder do Conselho Superior das Forças Armadas confirmou a realização das eleições parlamentares já na próxima semana, e de presidenciais até Julho de 2012. Ainda propôs a realização de um referendo sobre a permanência do regime militar no poder.

Apesar das declarações de Tantawi, a violência persiste em Tahrir. Contrariamente às posições dos revoltosos na primeira revolução, a unidade não é notória. A Irmandade Muçulmana não está a participar nos protestos, e anseiam pela realização das eleições parlamentares, contrapondo aos revoltosos que primeiro querem a queda do governo militar.


O cenário está totalmente em aberto quanto ao futuro do Egipto. Várias questões surgem perante os recentes acontecimentos.

Os militares continuarão no poder? A Irmandade Muçulmana acederá ao poder? Caminhará a sociedade egípcia para a democracia, ou seguirá o exemplo da Líbia aplicando a Sharia no país? Os Estados Unidos da América terão capacidade de agir no Egipto, caso os confrontos agravem? Estará Israel preparado para o surgimento de um Estado defensor da causa palestiniana?

Com o surgimento de novas notícias sobre os eventos em Tahrir, outras interrogações ocorrem. Neste momento como referi e pouco provável conseguirmos acertar no rumo que o Egipto tomará. Se após Mubarak muitos perspectivaram que a abertura à democracia estaria consolidada, meses depois deparam-se com um cenário totalmente caótico que contrapõem tudo aquilo que detinham como certo.

Importa reter que o Egipto não é um mero “peão” no xadrez político, e muito mais que isso. A sua posição é elevada, dada a importância que detém na região, como garante de estabilidade. É ainda mais importante dado o papel que deteve como mediador entre Israel e a Palestina. E certamente tudo aquilo que está a decorrer no país, e o rumo que tomar influenciará todo o Médio Oriente.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Paulo Yokota: “EUA e UE continuam com políticas económicas erradas”

Paulo Yokota, economista brasileiro (dupla nacionalidade japonesa), ex-director do Banco Central do Brasil, ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e antigo professor da Universidade de São Paulo. Tem marcado a sua carreira entre dois lados do Pacífico, Brasil e Japão, contando com várias publicações sobre o intercâmbio entre estes dois países, mas também já trabalhou pela Europa e Estados Unidos. É ainda o responsável pelo site Ásia Comentada, com o qual o Ocidente Subjectivo tem uma parceria de troca de divulgação de artigos. Em entrevista feita por email, o economista alertou que Estados Unidos e União Europeia têm seguido o caminho errado, continuando reféns do sistema financeiro, e mostrou-se muito crítico do FMI. Disse ainda que a introdução do euro foi “forçada”, identificou muita inércia entre os funcionários de instituições internacionais e avisou que o Brasil terá dificuldades em obter um lugar permanente no Conselho de Segurança.

Ocidente Subjectivo (OS): O euro conseguiu superar a primazia histórica do dólar mas a crise das dívidas soberanas em vários países da Zona Euro tem posto a nu várias fragilidades. Entende que o fim da moeda única europeia ou o convivência com o regresso de algumas moedas locais (como acontece em algumas localidades brasileiras com vista a estimular o comércio da região) poderia ser uma saída para a crise na Europa?

Paulo Yokota: Tenho a impressão que, apesar dos cuidados tomados antes da formação da Comunidade Europeia, a Europa não é uma região ideal para tais iniciativas, pois as diferenças entre os diversos países membros são acentuadas. Uma política fiscal uniforme em países de nível de desenvolvimento económico diferentes é sempre difícil. Os mais desenvolvidos ajudaram, em parte, no preparo de uma infra-estrutura compatível, mas, na minha modesta opinião, a introdução da moeda única foi forçada. Mesmo nos Estados Unidos, o sistema FED [Reserva Federal norte-americana] procura respeitar estas diferenças, com unidades regionais, com suas limitações e diferenças. Há necessidade, a meu ver, de uma política monetária diferenciada pelos diversos países membros, pois as evoluções das economias locais se realizam em compassos diversos.
Como resolver agora com a actual situação existente? Parece uma tarefa hercúlea que vai exigir muito pragmatismo. As realidades económicas, mesmo com as ajudas possíveis, continuarão diferenciadas não se conseguindo fortes impulsos regionais, acima da média da Comunidade, como estão a ocorrer no Brasil, dadas as deseconomias de escala e aglomeração existentes nos centros mais avançados, com ganhos de produtividade rural e de mineração nas regiões que antes eram menos privilegiadas.
O turismo pode ajudar em algo, bem como actividades que já estão florescendo nas áreas mais periferias, mas tudo vai exigir muito tempo, não havendo segurança de que países como a Alemanha possam sustentar a situação durante este período.
Acho que o novo dirigente eleito em Espanha [Mariano Rajoy] tem razão: não há milagre e será preciso diminuir as diferenças nos preparos dos recursos humanos e o máximo aproveitamento das oportunidades regionais. Acredito que o regresso ao passado será mais complexo. A Europa terá que continuar a fazer o que for possível.

OS: Se fosse presidente do Banco Central Europeu (BCE) optaria pela emissão de mais moeda? Neste sentido, considera que a desvalorização poderá ser um dos caminhos para sair da crise?

Paulo Yokota: O mundo continua utilizando os recursos de que dispõem, com os Estados Unidos a inundarem o mundo com os seus dólares, alegando necessidade de competir com os chineses. Como consequência, o dólar desvalorizou e as moedas dos seus parceiros valorizaram. Acredito que está a haver uma ligeira correcção recente, mas tudo ainda vai depender de como evoluirá a competitividade das diversas regiões no mundo. Como afirmou a Presidente [do Brasil] Dilma Rousseff na ONU, os Estados Unidos e a Europa, do nosso ponto de vista, continuam com as políticas económicas erradas, despendendo recursos para assistir o sistema bancário, quando o problema mundial só pode ser resolvido pelo aumento da demanda e do emprego. As empresas estão com volumes absurdos de recursos financeiros, mas não os investem, pois não existe demanda. No Japão, afectado pelos desastres, a reconstrução está a activar a economia com as demandas que estão a aumentar.

OS:
Barack Obama, que encara com apreensão os efeitos da crise europeia na recuperação nos Estados Unidos, vira-se agora para o Tratado de Livre Comércio Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), que deverá ser a maior área de livre comércio do mundo. Em breves traços, como vislumbra o panorama económico mundial após a consolidação desta zona?

Paulo Yokota: O TPP é um projecto de longo prazo e necessitaria conciliar de forma muito difícil a grande diferença existente entre os países que o estão a discutir, não se constituindo numa alternativa. Se forçarem a sua implantação, os seus participantes colherão problemas semelhantes aos da Comunidade Europeia. Existem muitas condições prévias a serem atendidas. Quer me parecer que a sua discussão é somente uma forma de fugir dos problemas que enfrentam com a desaceleração do crescimento da economia mundial. Os acordos de livre comércio só são sustentáveis quando os parceiros gozam de situações semelhantes.

OS:
Poderemos um dia vir a falar de uma “guerra” económica, com blocos muito fortes e fechados?

Paulo Yokota: Não acredito nesta “guerra”. O que pode acontecer é a tomada de medidas pontuais para resolver os problemas mais graves, com efeitos limitados. No actual mundo globalizado é impossível as economias se manterem fechadas, sob o risco de acabarem isoladas.

OS: Na sequência da questão anterior e tendo em conta o crescimento do Brasil, um país que tem apostado em proteger a sua economia, antevê um mundo cada vez mais proteccionista?

Paulo Yokota: As condições vigentes no Brasil, com uma tributação elevada, juros reais altos, infra-estrutura precária, recursos humanos pouco preparados, pesados encargos previdenciários e uma série de outras distorções, as medidas que estão sendo tomadas destinam-se somente a uma protecção temporária à estrutura industrial já existente. A elevação da produtividade agropecuária e da mineração, bem como das produções adicionais de petróleo e gás, acabam exigindo medidas para o avanço industrial, que não seja prejudicado por um câmbio extremamente valorizado. O Brasil, e não só ele, necessita de medidas multilaterais que controlem os fluxos exagerados dos recursos financeiros internacionais, principalmente os de carácter especulativo, mas o sistema financeiro internacional continua a resistir às diversas proposições neste sentido. O câmbio não é mais determinado pelo comércio e pelos investimentos, mas pelos absurdos fluxos financeiros, que são instáveis.

OS: Tem-se mostrado um optimista, defendendo mesmo que a situação no Japão após o sismo de 11 de Março trouxe algumas oportunidades a nível económico ao país. Em breves linhas, como pensa que poderá acabar a crise no contente africano, que, tal como o Brasil, é muito rico em recursos naturais estratégicos?

Paulo Yokota: África apresenta elevadas potencialidades do ponto de vista dos recursos naturais, mas ainda enfrenta a diferença entre os limites políticos a que foram impostos, quando uma parte substancial do continente ainda vive na realidade tribal. Mas, com a ajuda de países como o Brasil, e não tanto com a China, poderão ir, aos poucos e num prazo mais longo, consolidando uma classe média local, diversificando suas actividades económicas. Necessitarão de muito trabalho e por um prazo mais longo, mas o mundo está a necessitar de produtos que podem ser produzidos naquele continente.

OS: São os mercados que controlam a política ou a política pode controlar os mercados?

Paulo Yokota: Lamentavelmente, o que se chama mercado está distorcido pela forte influência do sector financeiro, que deveria estar ao lado do comércio, um dos braços auxiliares da produção. O bem-estar das diversas populações só melhorará na medida em que mais bens e serviços estejam à disposição delas. As simples transferências e os fluxos financeiros não ajudam muito na criação de bens de todas as naturezas.

OS: Há mais de dez anos, no rescaldo da crise asiática, encarada por muitos como a “crise do FMI”, e após o apoio daquela instituição ao Brasil, disse que o FMI não tem acertado e que é preciso voltar a dar maior atenção ao Banco Mundial. Continua a pensar o mesmo? Porquê?

Paulo Yokota: O FMI sempre teve uma distorção que imaginava resolver os problemas contendo as expansões monetárias e os gastos fiscais. Foram os coreanos que provaram que eles estavam errados e que é o aumento da produção que pode resolver os problemas, com o crescimento do emprego e das assistências aos desempregados. Está a haver uma evolução nos organismos internacionais, mas ainda muitos dos seus tecnocratas só sabem recomendar o que não foram capazes de executar, principalmente nos seus países de origem. Os que sabem, fazem, os que pensam saber, tendem a ensinar, sem nenhuma ofensa aos professores, que também fui um deles.  É muito fácil recomendar a outros que façam o que eles acham correcto, mas eles não estão sujeitos aos constrangimentos de toda a ordem, principalmente políticos.

OS:
A crise no euro já levou algumas pessoas a pôr em causa a actuação da União Europeia. Antevê a perda de poder de instituições internacionais perante a complexidade do mundo?

Paulo Yokota: Lamentavelmente, os organismos internacionais estão inflados com pessoal que apresentam baixa eficiência, pois são difíceis de serem cobrados pelos seus trabalhos. Se muitos são a favor das empresas privadas, onde a cobrança é imediata, criticando os funcionários públicos, imaginem os funcionários de organismos internacionais, cujos “patrões” estão muito distantes de uma efectiva “accountability”.

OS:
Considera que a Ronda de Doha está condenada?

Paulo Yokota: A Ronda de Doha, com um entendimento mundial, é cada vez mais difícil de obter avanços. Muitos países tentam alternativas pelos acordos de livre comércio FTA ou EPA – Economic Partnership Agreement. Acredito que os países necessitam ser pragmáticos, fazendo o que podem e não o que querem.

OS: Entre a dispendiosa luta contra o terrorismo (a guerra longa) e a crise económica, na sua opinião, como é que os Estados Unidos podem manter a sua supremacia na cena internacional?

Paulo Yokota: O mundo comandado por uma potência ou mesmo biporalizado parece coisa do passado. Já estamos num mundo globalizado e múltiplo, com muitos pólos regionais e intermediários. Os Estados Unidos não conseguem nem resolver os seus problemas, ainda que continuem importantes como geradores de algumas novas tecnologias. As suas universidades, que absorveram muitos europeus competentes durante e após a Segunda Guerra Mundial, hoje perdem parte dos seus mais capazes recursos humanos para países como a China. O predomínio da cultura e dos valores do Ocidente não são necessariamente os predominantes no mundo actual. Sempre nos esquecemos dos árabes e dos asiáticos. Até mesmo os andinos estão a ser recuperados, como muito do que os Maias nos deixaram. Estamos a reaprender muito com as civilizações milenares que já tiveram os seus apogeus no passado.

OS:
Entende que o facto de o Brasil assumir posições fortes, como a inclusão da Palestina como membro pleno da ONU ou a crítica à intervenção da NATO na Líbia, pode ajudar ou prejudicar a aspiração do país a membro permanente do Conselho de Segurança?

Paulo Yokota: O Brasil ainda terá dificuldades para obter um lugar permanente no Conselho de Segurança, pois a Alemanha e o Japão devem ter precedências e estão a receber vetos como o da China. O Brasil procura destacar a sua importância, como interlocutor de governos com os quais não concordamos, com o papel internacional que já desempenhamos, com o crescimento de sua economia de forma sustentável, com a substancial melhora de sua distribuição de renda pessoal e regional, com a consolidação de sua política com as substituições dos seus governantes (veja que até no regime militar tivemos sucessões), tradição de resolver as pendências internacionais com a diplomacia, forte miscigenação étnica e cultural, etc. Mas, também temos as nossas limitações e precisamos estar conscientes delas, aprendendo com as soluções que estão a ser obtidas por outros povos.